Acordou de sobressalto às nove da
matina, ao som do insistente celular. Seu costumeiro mau humor ao
despertar elevou-se à quinta potência por ser um sábado, dia em que juntamente
com o domingo costuma afundar-se no travesseiro sem ter hora para acordar. O
aparelho ecoando tímpanos adentro lhe tirou o melhor do sono e do sonho. Era
seu chefe, lhe escalando à queima-roupa para cobrir um campeonato de hipismo
que iria acontecer na cidade. Sua presença já estava garantida, tudo
esquematizado com a organização do evento, mas logo naquele dia, o famigerado
estava impossibilitado de ir e a repórter estava viajando. Sobrou então para
ela, a produtora, fazer a cobertura do programa de índio. Ô saco!
Após a inicial e sobre-humana
dificuldade em abrir os olhos e situar-se no tempo e no espaço, marcou para
o cameraman passar em sua casa para pegá-la às onze e irem
juntos à função. Banho tomado com água gelada a escorrer-lhe pela espinha; o café
quente da coragem goela abaixo e juízo acima; corretivo para encobrir as
olheiras de uma noite mal dormida, fruto do cansaço acumulado; maquiagem e
roupa impecáveis para parecer gente. E por fim lá estava ela, toda pronta e
devidamente sentada no sofá, à espera do colega de trabalho.
O tempo passa. Onze e cacetada e nada!
O celular toca outra vez. Era o companheiro de labuta:
- Alô, Laura, missão abortada! O carro
deu prego aqui no centro da cidade. Já falei com nosso chefe. Tá tudo
cancelado. Pode voltar a dormir. Depois a gente se fala. Tchau.
Como assim “pode voltar a dormir”?
Aquilo funcionou como um balde cheio de
pedras de gelo caindo em sua cabeça, pois havia aberto mão de suas preciosas e
intocáveis horas a mais de sono da beleza para cuidar de uma tarefa que nem de
sua alçada era, pois era uma produtora, e não apresentadora ou repórter. Nem
mesmo a pauta havia sido marcada por ela! Humpf! Ai que ódio!
Seu amuo inicial foi dando lugar a um
ser estático e afundado no sofá da sala, junto à sua mãe, a pensar alto: - Poxa,
final de manhã de sábado, perdi meu sono por nada! E eu aqui, toda produzida!
Sem mais
nada a fazer com relação ao imprevisto, decidiu almoçar mais cedo com a mãe. Na
última garfada, a genitora soltou a bomba, perguntando à empregada que lavava a
louça:
- Nininha, como é mesmo o nome daquele
amigo da Laurinha que faleceu ontem e que vai ser enterrado hoje à tarde?
Laura e sua maquiagem quase escorreram
juntas para o prato com tal revelação.
- Mas como assim um amigo meu acaba de
morrer e eu ainda não sei?
- Um tal de Fernando, filha! Não lembro
o sobrenome, mas parece que é um bem engraçado. A Nininha atendeu uma ligação
hoje cedo, mas você ainda estava dormindo.
- Meu Deus! Fernando de quê? Eu conheço
vários Fernandos!
E saiu como louca, dizendo um por um,
até que caiu em Fernando Paçoca , um amigo muito querido que fora
sonoplasta de quase todos os espetáculos dos quais ela havia participado nos
áureos tempos em que era atriz; um colega com quem cruzou por duas vezes o
Brasil junto a um grupo teatral para participar de renomados festivais. Um
amigo que gostava dela de graça e que adorava ouvir palhaçadas de uma menina
grande. O apelido “Paçoca”, na verdade, fazia menção ao seu cabelo enroladinho.
Atordoada, ligou imediatamente para um
amigo em comum que não só confirmou a triste notícia, relatando como o coração
do Paçoca velho de guerra havia lhe pregado uma peça muito da sem graça, como
informou o local do velório e o horário do enterro. Pegou então um táxi e rumou
para onde o corpo de seu amigo estava sendo velado.
Chegando à central de velórios,
aproximou-se então do caixão e, aos prantos, ralhou com ele.
- Como é que você está nos abandonando
desta maneira?! - disse ainda incrédula.
Seu choro
deu lugar ao sorriso triste e ao mesmo tempo alegre, ao rever ali tantos amigos
que não encontrava havia anos. Companheiros de teatro, de tempos idos e
dourados de farra, risadas, união e amor à arte. Não precisa nem dizer que ela
teve que explicar a todos o porquê de estar impecavelmente arrumada e
maquiadíssima. Ela, na completa desorientação, não atinou para lavar o rosto e
tirar aquela presepada de sua cara, completamente inadequada para o
acontecimento. Na verdade, foi questionada sobre sua aparência durante todo o
decorrer do evento.
Alguém lembrou uma característica
gritante no agora ausente amigo: a fama de conquistador, que se fez presente na
cena avistada no velório, pois debruçadas na borda do caixão, estavam ali,
expostas, esposa e amante, qual gêmeas siamesas, coladas uma à outra, como se
disputassem a posição principal, sem dar a mínima aos olhares mais curiosos.
Mais Nelson Rodrigues, impossível! Diante daquela visão, não restou a Laura e
sua turma outra coisa senão afastar-se um pouco e rir, não se sabe se do nervoso,
se da tristeza, se das duas disputando a importância na vida do morto, que mais
lembrava um dramalhão mexicano. Na verdade, ela e seus companheiros de luto
acreditaram piamente que o inesquecível amigo estava ali entre eles o tempo
todo, a soprar gaiatices no ouvido de cada um, com as suas tiradas impagáveis.
Foi unânime a sensação de sua sempre irrequieta presença.
"Laurica", como é chamada
pelos colegas de palco, ainda participou do terço rezado para encomendar a alma
do defunto, pouco antes do fechamento do caixão. Só que lá pelo quinto Pai
Nosso e quinta Ave Maria, das trocentas que ainda estavam por vir, pediu
licença, foi lá pra fora e soltou um gracejo junto aos colegas: - Caramba! Se
eu bem conhecia o Paçoca, o próprio deve estar sem paciência, revirando-se no
caixão e perguntando a que horas aquela ladainha vai acabar pra ele dormir
enfim o sono dos justos.
Corpo encomendado, caixão fechado,
cortejo fúnebre a seguir adiante.
Já no cemitério, todos presenciaram
aquela que foi uma das gags mais infames de todo o evento. Uma
barata saída do nada foi se instalar justo nas pernas de uma amiga do morto,
escandalosa por natureza. Foi pinote e grito pra todo lado no meio daquela
gente! Mais risos estampados na cara de pau dos presepeiros de plantão.
O caixão de Paçoca não entrou no túmulo
de primeira. Por ele ser obeso e alto, o esquife teve que ser feito sob medida,
mas não contavam com o espaço das alças, que tiveram que ser removidas na hora
do adeus final. Foi a parte mais dolorosa de todo o processo, pois todos os que
o amavam tiveram que permanecer ali escutando as fortes marteladas como se
fossem em suas próprias cabeças para a remoção das alças e aguardar o sucesso
das pelo menos 4 tentativas de guardar o corpo do grande companheiro naquele
buraco. Com a força das marteladas, o caixão meio que afrouxou a tampa, e
Paçoca foi enfim enterrado com o ataúde meio aberto.
Passada esta hora angustiante, Laurica
e sua turma saíram daquele lugar e foram ‘beber o morto’ num boteco pé sujo em
frente ao cemitério. E assim, brindaram o amigo ausente com Coca-Cola, a bebida
de que ele mais gostava. Ainda avistaram um ônibus passando pela frente do
cemitério, cheio de crianças em divertida algazarra. Laurica aproveitou para
tirar uma onda e falar que eram os filhos que Paçoca havia feito pelo mundo,
chegando atrasados para o enterro. A turma que estava no bar explodiu em
gargalhadas e ninguém se censurou por causa disso. Perfeitamente compreensível.
Além de sempre tirar brincadeira até do que não era para tirar, todos ali
sabiam que o que Paçoca menos queria nesta vida e na outra era ver alguém
triste.
Como estava sem carro, Laurica pegou
carona com um casal de amigos e no trajeto entre o cemitério e sua casa, fez um
desabafo: - Poxa, com tanta coisa triste acontecendo, a gente bem que merecia
agora unzinho pra fumar e relaxar um pouco... E a amiga no banco da frente:
- Não seja por isso! - E sacou de sua bolsa um cigarrinho da paz
prontamente embalado e a postos.
Não contaram conversa, foram fumando
durante todo o percurso. Riram, gargalharam loucamente e lamentaram, não
necessariamente nesta ordem. Laurica ainda pediu para que dessem mais umas
voltas pelo bairro antes de lhe descarregarem em casa, pois estava precisando
que o efeito entorpecedor passasse. Desceu em frente à sua casa à noitinha,
debaixo de uma chuva torrencial. Sua mãe abriu a porta para uma pessoa
totalmente diferente da que havia deixado a casa no começo da tarde. Nem falou
direito com a sua genitora. Encharcada pela chuva que caía lá fora e dentro do
peito, disfarçou os olhos vermelhos de choro e cannabis, além da
maquiagem destruída. Deu uma corrida para o banheiro que nem bala pegava, tomou
aquele banho que lava não somente o corpo, mas também a alma e foi deitar para
tentar dormir, sem choro nem riso, apenas pedindo para que o dia acabasse logo
e que tudo não passasse de um pesadelo psicodélico. Nem sequer comeu. Àquela
altura, não estava nem aí para fazer jus à gracinha que a galera do teatro
fazia com seu próprio nome quando 'dava um dois'. Estava prostrada e chocada
demais diante da brusca mudança de seu dia, pois arrumou-se para ir para um
lugar e foi para outro. Lembrou do sorriso de seu amigo que se fora, do
turbilhão de sentimentos dentro de si, na certeza de que acabara de vivenciar
um dos dias mais insólitos de sua existência. E por fim, antes de fechar os
olhos e cair nos acolhedores braços de Morfeu, desejou ardentemente voltar 24
horas no tempo e ser acordada bem cedo com seu patrão lhe azucrinando pelo
celular e que o dia transcorresse conforme o roteiro original, nada de
adaptações, fazendo o favor! Percebeu então que àquela altura seria inútil
fazer qualquer questionamento sobre qualquer coisa e deu graças a
Deus por ter sobrevivido a tanta dor e loucura.
Iana Marinho