domingo, 4 de abril de 2010

52 anos não vividos - O tempo não pára!


Era janeiro de 1989. Tinha eu então os meus dourados 14 anos. 

Sabe ali na avenida Ruy Carneiro, entre o Colégio Geo e o Mc Donald’s, naquele terreno cercado onde nada existe a não ser capim e algumas vaquinhas pastando de vez em quando? Quem é meu contemporâneo lembra muito bem que aquele terreno foi palco de maravilhosos shows através de um projeto chamado “Esquenta Verão”, quando vieram a João Pessoa os artistas de Rock já consagradas pelos jovens da época como, Engenheiros do Hawaí, Titãs, RPM, entre outros. 


Fui a um desses shows com uma prima e uma tia, despretensiosamente. E esta noite me rendeu uma visão que tanto me fascinou como ficou marcada a ferro e fogo em minha memória musical: a imagem de Cazuza no palco. 

Com o seu derradeiro show “O Tempo não Pára”, ele ainda não havia assumido publicamente a sua condição de portador do vírus do HIV, assunto ainda considerado tabu na época, mas o faria no mês seguinte, através de uma entrevista, tornando-se o primeiro artista brasileiro a assumir que tinha Aids. Mas naquele show, já podíamos notar as mudanças em seu físico, que passava da figura de um belo e atlético rapaz dos tempos do Barão Vermelho a uma pessoa visivelmente debilitada e com cabelos ralos, toda de branco, e uma bandana azul e rosa na cabeça. 

Me lembro dele cantando “Codinome Beija-flor”, enquanto reclamava com o iluminador, que não dava foco pra ele. Colocava o foco de luz em qualquer lugar, que não fosse no artista. “Eu protegi teu nome por amor...Ô babaca da luz, aqui ó!” e apontava pra si mesmo.... “...em um codinome Beija-flor...aqui, babaca da luz!”. E eu passada com toda aquela rebeldia! 

Fiquei enlouquecida ao ouvir “Faz parte do meu show”. Cazuza sentado num banquinho, com uma toalha no pescoço, e enfim, aquele bendito foco de luz ajustado, para mostrar toda aquela grandeza, todo aquele encanto que juntava bossa-nova, uma letra de arrepiar, um artista de figura fortíssima – e ao mesmo tempo, tão frágil - e um público extasiado e unissonante. 

No mesmo instante, me vi cativada por um artista ímpar, que potencializou a sua rebeldia devido aos efeitos colaterais dos coquetéis de AZT que tomava. Na minha inocência adolescente, já tinha sensibilidade suficiente para enxergar que aquele ser tinha urgência e sede de viver; que cantava com a sua voz rasgada e cheia de protestos em carne viva; que pediu para que todo mundo fosse de branco naquela noite para assistí-lo. Lembro daquele mar de gente quase todo de branco. Aquela multidão que fora ali para, sem saber, presenciar a última passagem de Cazuza por João Pessoa. 

Depois disso, me vi totalmente hipnotizada pelo Caju (apelido carinhoso dado pelos amigos mais próximos). Passei então a deixar de lanchar na escola para juntar dinheiro e comprar, um a um, todos os seus LP’s de carreira-solo. Fiz álbuns de recortes de revistas e jornais. Qualquer coisa que mencionasse Cazuza, lá estava eu, adolescente, procurando alguma ideologia pra viver. E assim fui, aprendendo as músicas, saboreando as letras, adentrando ainda mais naquele universo tão novo, inesperado, intenso de irreverência ... e torcendo para que o meu herói não dissesse tchau nem tão cedo. 

Mas Caju se foi em julho de 1990, vencido por uma doença ainda sem cura, deixando toda uma geração arrasada e órfã de versos fortes e de identificação imediata, na qual me sinto inserida. 

Muitos anos depois de sua morte, tive a feliz oportunidade de conhecer Lucinha Araújo, mãe de Cazuza. Era o ano de 2004, e ela iria participar da gravação de um programa de TV para divulgar o seu trabalho junto à Sociedade Viva Cazuza, na qual ela se engajou logo após a perda do filho, onde toda a atenção é voltada às crianças carentes, portadoras do vírus HIV. O programa era gravado na produtora onde eu trabalhava no Centro do Rio de Janeiro. 

Quando eu soube que Lucinha estava na produtora, corri para os estúdios na velocidade da luz. Aproximei-me dela, que estava sentada, aguardando a sua entrada no programa. Trêmula e gelada, peguei sua mão. Ela sorriu e eu me ajoelhei diante daquela mulher cheia de energia, luz e a força de quem perdeu o seu único filho para um mal ainda obscuro demais para a Ciência e apenas disse: “É uma honra pra mim esse momento com você. Sempre serei apaixonada pelo seu filho!”. Eu tinha tanto a dizer a Lucinha, mas minha garganta travou e meus olhos marejaram. Envergonhadíssima, dei-lhe um beijo e um abraço bem apertado, ganhei um cartão e um convite para conhecer a Sociedade Viva Cazuza. Saí do estúdio com aquele nó no peito e voltei para o quarto andar, onde ficava meu ambiente de trabalho, mas não voltei direto à minha mesa. Dei uma passada antes pelo banheiro, para chorar copiosamente, e curtir aquela emoção de por um momento, sentir a presença agridoce do Caju, através da Lucinha. 

Hoje, passados quase 20 anos de sua morte, cá estou, com a minha ideologia já cristalizada, porém sempre em busca de algum veneno anti-monotonia e a sorte de um amor tranqüilo. 

52 anos ele teria se estivesse ainda neste plano, mas seu tempo aqui já estava estipulado. Porém, foram os 32 vividos de forma intensa que contaram ao final de tudo. Resta apenas ouvir com puro e raro deleite os seus registros de voz e admitir que não há sucessor para ele. Há sim a inspiração vinda dele mesmo, tanto para os artistas de sua própria época, como para jovens que sonham com um futuro brilhante ao som de acordes de guitarras e baixos, a “conspirar” trancados em suas garagens para enfim, nos surpreender com algo tão novo e inesperado como Cazuza foi, é e sempre será. Antes de qualquer coisa, Caju era um eterno apaixonado, pela vida e pelas pessoas, e tinha essa paixão correspondida de volta. “Como é estéril a certeza de quem vive sem amor”, dizia ele em uma de suas músicas. E como ele amava, era também fértil em sua obra e em sua verdade absoluta. 

Vou dormir para sonhar com você Caju. Pro dia nascer feliz.