quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Asas do Caos

No meio deste ano, Ícaro, meu irmão mais novo, participou de um ato muito lindo. Ele, como médico, envolveu-se em uma ação humanitária do Exército para auxiliar as vítimas das enchentes no interior de Pernambuco, decorrentes das fortes chuvas que castigaram aquela região entre abril e maio. Fiquei tão tocada pelo seu gesto que, movida pela emoção, escrevi um conto que também foi inscrito no concurso de contos Newton Sampaio, no Paraná. Com base em alguns relatos do próprio Ícaro, desenvolvi o texto que agora divido com vocês aqui em meu blog. Deixo para vocês a imaginação correr solta para separar o que foi real e está simbolizado através das fotos que ajudam a contar a história e o que é fruto da minha cabeça. Eu só sei que sou orgulhosa demais da conta pelo irmão que tenho. Espero que gostem. 








ASAS DO CAOS


           Quatro da manhã.
            Ícaro abre os olhos sonolentos e pesados. O descanso vital passou galopando. Quanto tempo conseguiu dormir de braço dado à insônia insistente? Duas horas? Três? Não importava muito àquela altura do amanhecer. Mesmo sem a disposição necessária, tinha que começar o dia no exato momento em que o despertador anunciava o desfazer de sonhos. Se deixar o sono e o cansaço tomarem conta, sabe que vai até as onze ou mais, entregue aos lençóis e ao aconchego de seu quarto.
            Em cima de uma cadeira, o uniforme verde-oliva passado pelas mãos orgulhosas de sua mãe lembrava-lhe do compromisso do dia. Aos pés da cama, o velho coturno aguardava as instruções de para onde levar o seu dono.
            - Bem, o que eu não resolver, o café resolve, - pensou o médico aspirante do exército, ajustando no corpo a sua farda engomada, enquanto sorvia bem devagar a bebida que descia por suas entranhas, acordando-o para o mundo.
            O frio de manhã cedinho cortava-lhe o rosto quando saiu de casa com destino à base militar. Somente ele caminhava nas ruas àquela hora, ouvindo pela vizinhança apenas os trinados dos pássaros chamando a todos para a vida lá fora, que já estava a pleno vapor.
            Concentrou-se em sua missão e seguiu em frente sentindo a energia suave do sol, cujos raios atravessavam as copas das árvores e lhe aqueciam a face.
            Pela primeira vez em sua vida iria voar de helicóptero. Já havia viajado de avião muitas vezes, mas aquela novidade invadia o seu íntimo como algo muito desejado desde os tempos de criança, e a ansiedade, por fim, tomou conta dos instantes seguintes.Já na base aérea, juntou-se aos colegas para ouvir atentamente as instruções de seus superiores e entrou na aeronave.
            A inquietação mostrou a sua real face quando enfim o pássaro de aço levantou voo. O barulho ensurdecedor daquela parafernália só não foi maior do que a emoção de testemunhar o distanciamento do solo e enxergar lá de cima as casas, prédios, carros, plantações e florestas, tal e qual miniaturas de maquete.
            Enquanto voava, Ícaro lembrou-se de seu homônimo da mitologia grega, que cruzou afoitamente o firmamento e teve as suas asas de cera derretidas devido à proximidade do sol. Aquela lembrança deixou-o incomodado. Sentiu um arrepio na espinha ao dar-se conta de onde estava e tentou pensar apenas na parte boa da malfadada história que se igualava à sua: o fascínio em ganhar os ares.
            Em meio ao trajeto aéreo, chegou a sentir vergonha de si mesmo ao flagrar-se em total alumbramento diante daquela imensidão azul salpicada de nuvens, pois percebeu que o mundo que o aguardava, nalgum lugar lá embaixo, apresentava uma paleta de cores nada alegres, que iam do cinza ao marrom em todos os seus matizes. Ao acordar daquele canto de sereia, deparou-se com uma realidade que seus olhos se recusavam a aceitar, por mais que estivesse preparado e direcionado para aquela situação. Depois de passar por uma nuvem mais densa, pôde ver com espanto o cenário devastado pelas cheias no interior de Pernambuco. A cidadezinha lá embaixo ganhava contornos aterradores, parecendo-se mais com uma massa compacta de lama. Pontes destruídas que impossibilitavam que a ajuda viesse por terra, casas varridas pela força das chuvas e outras tantas já em ruínas irrecuperáveis. Quase nada permaneceu de pé e o céu dava recados de que as águas não dariam trégua nem tão cedo.

            Com o helicóptero, enfim, em terra firme, todos se encaminharam às suas atribuições humanitárias e o médico rumou para o posto de saúde, onde colegas revezavam-se no atendimento aos desabrigados e distribuição de alimentos, água potável, roupas, cobertores e remédios, doados de todas as partes do país por pessoas sensibilizadas com toda aquela tragédia.
            Lidar com situações adversas já fazia parte de sua profissão havia muitos anos, mas aquela situação diante de seus olhos tocou-lhe de uma forma que jamais saberia explicar. Em uma simples volta pela cidade, Ícaro viu o verdadeiro significado da palavra “solidariedade”, ao ver muitos moradores darem um lar a quem perdeu tudo. Os meninos jogando bola em meio ao lamaçal das ruas e em frente aos escombros do que um dia foi uma escola mostravam que a esperança não havia esquecido aquele lugar. As pessoas sorriam um sorriso triste e, ao mesmo tempo, alegre, ao ver que não estavam de todo desamparadas. Famílias inteiras se amontoavam nos abrigos improvisados. Muitos carregavam no corpo e na alma lembranças de quem perdeu muito mais do que lares e pertences.
            Ícaro começou o atendimento no precário ambulatório. Na fila de espera, uma criança com larvas na cabeça e sinais de desnutrição; uma adolescente grávida, prestes a parir; dois pacientes portadores de leptospirose; uma mulher moribunda colocada isoladamente em uma maca, a gritar fracamente pelos seus documentos, fotos e lembranças. As horas passaram e percebeu que era interminável aquele mundo de gente sofrida, que vinha de todas as redondezas, a buscar um punhado de dignidade das mãos dos voluntários recrutados. Mas foi um jovem aparentemente de sua idade que mais lhe chamou a atenção. Estava sentado olhando para o nada, com a aparência de quem não tomava banho havia muitos dias. Foi dito ao doutor que aquele moço estava naquela catatonia desde o dia em que o mundo decidiu que aquela cidade não mais existiria.
            - Bem, vamos ver o que posso fazer por ele, - pensou o médico.
            Aproximou-se devagar do jovem, que não esboçava reação alguma. Sequer piscava seus olhos enevoados. Apenas olhava para o nada e mantinha sua respiração com longos suspiros.
            - O que posso fazer por você? - perguntou Ícaro.
            Nenhuma resposta veio. Tentou então novamente:
            - Se você não disser o que tem, vai ser bem difícil ajudá-lo e eu estou aqui para isso.
            Na completa falta de reação do jovem, o doutor então pediu:
            - Se sentir necessidade de qualquer coisa, estarei logo ali naquela mesa, está bem?
            Deixou de lado o jovem estático e foi cuidar dos inúmeros outros afazeres.
            E assim correram três dias de voluntariado. Quanto mais as horas avançavam, mais Ícaro assistia estupefato a todas as mazelas provocadas pela fúria da natureza e agradecia por ter forças para ajudar ao próximo com dedicação e desprendimento.
            Em seu último dia na cidadezinha devastada, estava no ambulatório sentado e imerso em suas anotações de tudo o que vira em sua estada naquele lugar, quando sentiu alguém tocando seu ombro. Olhou para trás e viu o jovem que até então estava mergulhado em inércia e tristeza.
            Surpreso, Ícaro falou:
            - Então, que bom vê-lo de pé e caminhando. Diga-me: o que posso fazer por você?
            - Não sei se você conhece o que se passou comigo, - disse-lhe o jovem em tom suave. Eu estava a dois dias de meu casamento quando o céu desabou em água e destruiu o meu mundo, levando aquilo que mais me dava gosto em viver: o meu amor. As cheias levaram Ofélia para onde só Deus sabe. Muitas pessoas daqui viram-na ser levada pela correnteza, mas ninguém até hoje encontrou o seu corpo. Então, seu doutor, pior do que saber que meu amor nunca mais irá voltar para os meus braços, é a certeza de que nem o corpo eu terei direito de enterrar.
            Duas grossas e brilhantes lágrimas caíram no rosto do jovem, coberto de poeira e dor.
            - Se o senhor queria me ajudar, já o fez escutando a minha história. Duvido que para isso o senhor tenha algum remédio. Mesmo assim, obrigado por tudo. Bem, acho que existe uma coisa que o senhor pode fazer, sim.
            - O que é?
            - Cuide bem do seu amor, se tiver um.
            E começou a caminhar em direção aos demais moradores do lugar, até desaparecer no meio deles.
            Acostumado a salvar vidas e confortar aqueles que estão em agonia, Ícaro sentiu-se inútil e desejou mais do que qualquer coisa dar algum alento àquele pobre homem.
            O helicóptero aguardava os voluntários para levá-los com segurança para casa. A missão não tinha sido nada fácil para nenhum deles e cada um foi tocado profundamente por aquelas visões de caos e desespero.
            Ao levantar voo e distinguir lá de cima as ruas e praças enlameadas da cidadezinha quase que totalmente destruída, Ícaro pôde ver ao longe o rapaz que contara a sua triste história, vagando pelas ruínas como quem deseja recomeçar a vida, mas não sabe por onde e nem como. Lembrou-se do conselho dado por quem perdeu algo tão precioso e tirou do bolso da já amarrotada farda a foto de sua noiva. Enternecido, o jovem médico suspirou e deixou também duas lágrimas virem à sua face. Já nem mais se importava se estava voando, com o espetáculo de cores do pôr-do-sol bem à sua frente. Seus olhos só queriam saber naquele instante de um outro tipo de céu, de longos cabelos louros, sardas e olhos castanhos. Se o personagem da mitologia grega voou para o horizonte e tomou uma atitude impensada que lhe custou a vida, o médico já não se deslumbrava tanto com aquele magnífico espetáculo do firmamento. Depois de tanta tragédia vista de perto, a maior certeza que possuía na vida, naquele exato momento, era o destino de sua rota.

sábado, 6 de novembro de 2010

Saga de uma solidão dourada

Mais um conto de minha autoria para postar!... Este aqui estava participando do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, em Curitiba-PR. Minha inspiração veio através de uma criaturinha que realmente existe. Fui testemunha por muitos e muitos dias de sua vidinha, encerrada em um pequenino aquário. E aqui está o resultado. 
Devo aqui ressaltar que nada disso seria possível, não fosse uma pessoa muito especial chamada Marcio Paschoal, de quem fui aluna por um período infelizmente muito breve, mas o suficiente para marcar dentro de mim grandes transformações. Conheça: http://www.marciopaschoal.com/ Grande escritor e mestre carioca, Marcio não somente enxergou infinitas possibilidades nos meus escritos como me encaminhou e me encorajou a participar de alguns concursos de contos. Para mim, é e sempre será motivo de muita honra e orgulho poder contar com o seu apurado senso crítico nos meus caminhos literários. Obrigada, Márcio! Tenha sempre em mim, além de uma amiga, uma grande admiradora de seu trabalho!! 
E vamos a ele, o conto!



SAGA DE UMA SOLIDÃO DOURADA

Era apenas um peixe, como tantos outros ali naquele imenso aquário à espera de um destino desconhecido. Distraído como era, nem notou quando foi escolhido dentre seus iguais e agarrado pela temida redinha. Muito menos demonstrou resistência, aceitando com resignação a tomada de rumo incerto.

O que o aguardava além da soleira da porta daquela loja de peixes ornamentais? Uma criança capaz de jogá-lo maldosamente em um vaso sanitário e dar descarga? Alguém muito relapso que o deixaria dias sem comer sua ração nutricional ou o entupiria de qualquer outro tipo de comida que não fosse a mais adequada? Sem mais nada a fazer diante da inevitável sorte, procurou apagar os maus pensamentos e lá se foi, num dia sem sol, devidamente acomodado em um saco plástico cheio de água e ar, cuidadosamente seguro pela mão de uma mãe zelosa que só queria ver um sorriso do filho, tão dourado quanto a cor das escamas daquele presentinho vivo.
Foi então despejado em sua nova morada, um aquário pequeno e quadrado cheio de pedrinhas coloridas, mais nada.
Tentou familiarizar-se com o ambiente ao seu redor, que mais parecia uma prisão solitária à luz do dia. Como seria dali para a frente? Ele e mais ninguém, entre quatro paredes de vidro.
Nos primeiros dias de adaptação, pescou sem querer uma conversa entre humanos na sala de estar:
- Espero que esse aí dure bastante, viu? Porque o Betta que eu tinha antes dele amanheceu morto, boiando em pleno sábado de carnaval e foi parar em uma sacola plástica de supermercado, no fundo do tambor de lixo. Deu-me uma trabalheira danada, além de o meu filho passar o dia inteiro chorando. Sem falar no que comprei logo em seguida, que foi um douradinho igual a esse, que acabou morrendo estressado porque o aquário espatifou-se na minha mão e caiu no chão, com ele se debatendo entre os cacos de vidro, a água escorrida e o meu sangue. Eu lá, cheia de dor e de susto, enquanto meu filho gritava, agoniado, apontando para aquela coisinha: “Mamãe, o peixeee!...”
Aquilo ondulou todas as suas escamas, e seu corpinho frágil experimentou um frêmito jamais sentido antes. Então aquele seria o seu fim? Sozinho, inerte e inchado, a boiar naquelas aguinhas quadradas? “Que morte mais estúpida!”, pensou, com suas brânquias.
- Acho que vou morrer é de fome, azucrinou-lhe mais uma vez o famigerado pensamento, pois quando alguém se lembrava de alimentá-lo, ou seja, quase nunca, eram jogadas na água cinco minúsculas bolinhas nutritivas que ele devorava sofregamente em uma fração de segundos, tamanha era a sua fome. Após a refeição, ficava nadando pra lá e pra cá, dando voltas naquele mundinho de nada, submerso em solidão e perguntando-se em que dia seria alimentado outra vez.
Os dias foram passando e a vida seguia o seu curso. À sua frente, viu desfilar uma série de situações cotidianas dos habitantes humanos da casa. Ora o pequeno Gabriel sorria ao contemplar as peripécias limitadas do adorado peixinho, ora chorava motivado pelas birras típicas de uma criança de três anos. Ora a mãe dava beijos estalados e amassos indecentes no namorado no sofá da sala de estar, bem em frente ao pequeno aquário quadrado, ora chorava trancada em sua própria dor, talvez achando que ninguém a estava observando. Risos, festas, brigas e ele ali de testemunha ocular, dia após dia, na mesmice de seus movimentos, no silêncio de seu mundo aquático.
Para não dizer que o ócio reinava absoluto, deleitava-se com a adrenalina promovida pelos momentos da limpeza de sua morada de vidro. E lá vinha novamente aquela redinha, a puxar-lhe com delicadeza para transportá-lo temporariamente a um recipiente que outrora servia de pote de sorvete de dois litros. Era uma verdadeira aventura, pois por questão de segundos, ficava exposto ao ambiente da superfície sem poder respirar, até sentir-se seguro novamente no pequeno pote branco. Passados então alguns minutos sem saber o que lhe vinha depois, o processo invertia-se e o pequeno destemido voltava à sua morada sem graça. Mas apesar desta breve emoção e da novela humana que se desenrolava diariamente diante de seus olhos arregalados, continuava só. Mais só ainda ficou quando lhe foram retiradas as pedrinhas coloridas que enfeitavam o seu reino-cubículo. Por quê? A mãe do pequeno Gabriel já havia reparado a estranha mania do douradinho de bater a cabeça nas pedrinhas, a ponto de o mesmo sempre apresentar uma mancha negra na cabeça, antes inexistente.
Que chateação, viu! Sem liberdade, sem pedrinhas, sem iguais! O que lhe sobrava então? O seu próprio vai-e-vem já o deixava um tanto louco, assim como loucas eram as ideias que lhe passavam pela cabeça, uma atrás da outra. Aproveitaria a saída da mamãe para saltar para fora do aquário e morrer dignamente estirado no tapete da sala? Desejaria ser esquecido, a ponto de não se lembrarem de fazer a costumeira limpeza no aquário e morrer naquela água apodrecida, entre restos de alimento, suas próprias fezes e secreções?
Queria estar em seu habitat natural, se ao menos soubesse como ele era. Ora, não lembrava simplesmente porque desde ovinho era criado em cativeiro.
Deixou de lado as ideias sem sentido para voltar os olhos à janela da sala de estar. No meio daquela tarde, o céu fez-se de um negrume assustador e a mesma água que lhe garantia a vida, caía aos borbotões lá fora. Uma chuva da boa que aos poucos se transformou em um preocupante dilúvio, daqueles que fazem encostas de morros se esfarelarem num piscar de olhos.
Gostava de ver a chuva pela janela em frente ao aquário. Era um de seus poucos prazeres e quanto mais ela engrossava, mais fascinado ficava.
Viu então a chance de sua vida acenar-lhe quando ouviu a empregada atender ao telefone:
- Alô! Oi, patroa! Vai chegar bem mais tarde? Tá tudo parado? Quê? Tudo alagado? Meu Deus!
Observou atentamente quando a moça foi até a janela e avistou do segundo andar a rua tal e qual um riacho, completamente tomada pelas águas. Continuou olhando o novo capítulo humano se desenrolar diante de si e desta vez decidiu que queria fazer parte daquilo. Mas como?
Olhou ao seu redor e nada viu que o fizesse querer permanecer ali, naquela vida tão sem vida. Tomou fôlego e impulso com toda a força que nem sabia que tinha e pulou para fora do aquário, caindo certeiro onde já sabia: o tapete!
No mesmo instante, a empregada notou de longe o brilho dourado das escamas no meio dos fios pretos sintéticos, deu um grito e correu para tentar salvar o peixe do Gabriel e da patroa e se safar de uma baita bronca.
Mas já era tarde. O douradinho jazia inerte no tapete molhado.
Atordoada, pensou rápido em como se livraria do pequenino cadáver.
- Vou jogar no vaso do banheiro e dar descarga! Ah não! Não tenho coragem! Ah, vou jogar no lixo! Não, muita crueldade com o bichinho! Já sei! Vou jogá-lo pela janela, que as águas vão levar!
A chuva caía impiedosamente lá fora, causando tudo quanto é mazela. Com água, ar e sem saco plástico, aquele corpinho cor de ouro foi arremessado pela janela, rodopiou no ar e juntou-se à água barrenta que corria pelas ruas, banhando e levando tudo pela frente.
Puxa, como foi difícil fingir de morto para aquela empregada! Ter que se arriscar em prol de um plano que tinha tudo para dar errado! Um plano absurdo de sair daquela prisão que lhe roubava a vontade de estar vivo!
Estava desorientado, mas conscientizava-se de que estava radiante. Seu plano havia funcionado! Nem mesmo a escuridão das nuvens pesadas do céu encobria o brilho emanado de suas escamas. Sentiu que o seu miúdo coração queria saltar-lhe da boca de tanta emoção represada e que agora desaguava naquela infinidade. E, embora a tempestade tomasse conta do mundo inteiro naquele momento provocando dor e destruição, deslizava satisfeito por entre os córregos. Sequer se importou com a imundície daquelas águas e nem tampouco sentiu falta dos seus iguais, muito menos temeu o porvir. Apenas saboreava a solidão consentida, naquele momento único de liberdade absoluta, ruas acima, ruas abaixo, desvendando enfim os mistérios do além-aquário. E suspirava feliz... e flutuava... e enfim, vivia!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Tempo de girassóis



Em 14 de abril de 2008, tive a honra de publicar no site que eu gerenciava, o salesdantas.com, uma entrevista que fiz com o então prefeito de João Pessoa, Ricardo Coutinho, concedida com exclusividade para o portal. Na época, já caminhando para a sua candidatura à reeleição, Ricardo recebeu-me em sua residência e foi de uma gentileza e generosidade que não esquecerei jamais. Hoje, com Ricardo recém eleito Governador da Paraíba, releio esta entrevista e nela reencontro e reforço tudo o que me fez passar a admirar ainda mais esta figura  tão respeitadora dos anseios de seus iguais. Por isso, resolvi aqui neste espaço republicar esta entrevista em sua íntegra, reiterando o meu orgulho e honra por tê-la realizado. Agora, é hora de regar e cuidar do imenso campo de girassóis e de você, cidadão, conhecer logo mais abaixo, um pouco do íntimo do homem que conduzirá com dignidade e maestria, pelos próximos quatro anos, o "recanto bonito do Brasil".




Ricardo Coutinho: perfil de um cidadão comum

Por Iana Marinho
14/04/2008


A proposta era não falar de política. A tônica seria mostrar o outro lado de quem tem a responsabilidade de tocar em frente toda a complexidade de uma cidade do porte de João Pessoa, com seu desenvolvimento a pleno vapor. Mas não tem jeito. Está nos poros, incrustrado em seu destino e dia-a-dia.  E a política vira, fatalmente, em alguns momentos, a protagonista.

Falar como gerir uma cidade pode ser até fácil, mas quando se trata de falar de si mesmo, de entrar na própria intimidade para expor medos, alegrias, realizações, falsidades, lembranças, enfim... sobre vivências em geral, é algo que pede bastante coragem e desprendimento. Aqui, em uma conversa bastante informal, está o outro lado de um cidadão comum, ciente de seus direitos e deveres. Ricardo Coutinho gentilmente cede esta entrevista ao portal de notícias salesdantas.com, abrindo as portas de seus mais profundos sentimentos e verdades. Uma coisa é certa: este pessoense, criado em Jaguaribe, ama, incondicionalmente, esta cidade. De resto, é ele mesmo quem conta a história.


1 – Você é natural de João Pessoa. Em que bairros você morou e que lembranças lhe vêm à mente, quando você se transporta para a sua infância?

R - Nasci em Jaguaribe. O bairro era uma espécie de espaço dos setores médios da cidade, setor de intelectuais, artistas... Jaguaribe sempre teve um carnaval antigamente importante, tinha um movimento cultural que durante muito tempo formou escola dentro da cidade, o “Fala Jaguaribe”.  Os “Falas Bairros”, inclusive, começaram a surgir exatamente em Jaguaribe, e a lembrança forte que eu mais tenho é o cheiro da terra em dia de chuva... muito forte, porque hoje a gente não sente mais, mas eu sentia muito isso porque eu nasci numa rua lá, a Primeiro de Maio, a rua da Escola Técnica Federal, que na época era Escola Industrial e tinha umas  chuvas grandes que davam e alagavam aqueles paralelepípedos. Eu achava uma delícia! Sentir o cheiro e tomar banho lá daquelas águas todas.

Aí morei em Tambaú. Morei 1 mês no Cristo, quando meu pai morreu. Depois morei em Manaíra. Depois morei nos Bancários por muito tempo, uma delícia. Foi quando comecei a fazer política sindical. Quando fui para a Câmara de Vereadores, continuei morando nos Bancários. Morei 1 ano no Intermares, aí eu fui morar no Cabo Branco, que eu sempre achei uma graça; um espaço muito interessante.
  
2 -  Você foi um “moleque”, traquinas ou mais introspectivo?

R – Eu acho que fui comportado. Ah, mas eu era moleque de correr, de bater bola, de ter turminha. Mas eu fui muito comportado, nunca dei trabalho não. Eu sempre buscava me bancar, eu nunca fui muito de dar trabalho pros outros não. Eu tinha que primeiro, vamos dizer assim “bancar a minha”.

(Entrevistadora interrompe) Desde criança então você já tinha esse raciocínio tão adulto?

R – Eu não me lembro de nenhuma estripulia que eu fizesse. Eu me lembro que pra fumar, eu comecei a fumar na adolescência. Meu pai não permitia, não gostava e tal, mas eu fumava meio que escondido, aquela coisa, mas muito comportado, naquela época o comportamento era muito diferente, tinha pouca violência... enfim...

3 - Seus pais eram muito rigorosos?

R - Não. Meu pai é que de início era. Na verdade, minha mãe é uma pessoa muito forte, é costureira, teve dez filhos; 8 mulheres, dois homens. Imagine ter 8 filhas mulheres na década de 60, uma década muito forte, de mudanças de comportamento, do mundo. Não foi só aqui, foi no mundo todo. Então, foi uma década marcante e minha mãe sempre bancou as coisas, enfim, trabalhava muito, e tudo isso fazia parte da construção de nossas personalidades. Mas meus pais sempre diziam: “Cada um se vire, porque precisa se virar; responda pelo que faz.” Podíamos até não gostar, mas a responsabilidade primeira era de cada um. Eu acho que isso foi uma coisa bacana.
  
4 –  Você além de político, também é farmacêutico. O que o levou a escolher esta profissão (a de Farmacêutico)?

R– Eu acho que foi uma escolha da época mesmo. Eu queria Farmácia... e...queria...na verdade Bioquímica, Análises Clínicas... aí fiz (Farmácia). Passei num concurso da Universidade, primeiro, para auxiliar de laboratório, e depois para farmacêutico. Aí fui trabalhar com medicamentos no Hospital Universitário. E depois, por conta de disputa interna, lá na política da Universidade, foi quando me tiraram e me colocaram, primeiro, no CCS, e depois eu fui pra Pró-Reitoria  de Ações Comunitárias. Mas, desde 98, eu me licenciei da Universidade, sem vencimentos, pra poder exercer o mandato de deputado. Aí eu fiz minha “passagem” pra política, porque não dava pra conciliar. Eu não tinha tempo. Terminava sem trabalhar direito. Mas, sou farmacêutico sim.

5 - E o que levou um farmacêutico a entrar na política?

R– Eu acho que o Movimento Sindical. Eu acho que a política sindical, a disputa. Também toda uma época. A época era muito isso, era a saída de uma Ditadura. Então tinha muita efervescência social, as pessoas estavam querendo meio que respirar, querendo dizer coisas que não podiam ter dito ao longo de tantos e tantos anos.

Eu fui fazer um curso de Especialização em Farmácia Hospitalar na UFRJ, em 84. Então, na semana que eu cheguei lá foi a semana do começo da Candelária, das Diretas, e eu fui praquele “troço” (sic), que não sabia nem onde era um canto ou outro, enfim, peguei um ônibus - que eu lembro que o Brizola tinha colocado os ônibus, todos de graça - e fui embora pr´aquela multidão, uma coisa impressionante! Aí depois, fiz amizade com um pessoal de lá, de funcionários da Universidade. Até hoje, eu tenho amigos grandes lá no Rio de Janeiro, provenientes dessa época. Aí, eu voltei pra cá. Eu tinha uma proposta de ir pra Cabo Frio, ser sócio lá de uma farmácia de manipulação de uma amiga minha, enfim, que eu tava trabalhando um pouco nisso também. Mas aí, a responsabilidade de ter ido pra lá (RJ) fazer um curso... Eu tinha que voltar para devolver à Universidade aquilo que eu tinha ido fazer lá. Aí voltei e, imediatamente, comecei a respirar essa coisa. Eu sou meio exagerado. Entro de cabeça nas coisas. Eu sou sempre extremado, intenso. E aí, caí nessa questão do movimento sindical, e fui passando pelo sindicato, pelas coisas, e, naquela época, hoje também é, mas naquela época muito forte, as representações sociais, os segmentos da sociedade tinham naturalmente, uma tentativa de se ocupar espaços na política, no parlamento, pra poder favorecer a luta, àquilo em que estava se lutando antes. Era uma estratégia importante, e eu fui exatamente fazer disputa em 1990, que era uma disputa  pra não ganhar, porque já sabia que não tinha como ganhar. Mas, assim, aí, foi um resultado bacana. Não ganhou, mas, foi um resultado bacana. Aí, em 92, eu fui candidato a vereador. Aí ganhei, ... ganhamos, né? E aí, a gente teve que parar e dizer: e agora?  Enfim, entrei na política por conta disso.

6 – E se você não fosse nenhum dos dois: nem político e nem farmacêutico, o que seria?

R– Provavelmente, talvez, arquiteto.  Eu passei a ter uma noção de espaço urbano muito forte. Foi quando eu entrei na política, e fui ser vereador. Quando fui tomar posse como vereador, eu percebi que não tinha ninguém que discutisse isso. A cidade é um espaço urbano, como é que não tinha ninguém que discutisse isso? Eu também não entendia disso. E comecei a me interessar. Luciano Agra, amigo meu, que hoje é Secretário de Planejamento, confessou que me passou muita idéia de espaço urbano, porque o espaço urbano simboliza o autoritarismo, a democracia ou a ausência de democracia nas relações humanas, nas relações coletivas. E aqui, a cidade pode ser antidemocrática ou pode ser democrática, de acordo com seu arranjo. Eu comecei a perceber isso, a entender um pouco da coisa, a ter uma idéia a respeito. Isso foi me consumindo. Eu hoje tenho uma espécie de paixão por Arquitetura. Passei a ser muito absorvido pela história do urbanismo, dos espaços que as pessoas freqüentam. Isso tem uma influência, muito grande nas coisas que a gente teve oportunidade de fazer: essas praças, enfim, essas intervenções que servem fundamentalmente pra juntar as pessoas. Que as pessoas se juntem, né! Acho que quando as pessoas se juntam, as coisas acontecem diferentemente. Aí, talvez Arquitetura. Eu acho que, inevitavelmente Direito, que eu antes achava muito chato. Mas, aí, trabalhando com leis, eu tinha que buscar entender disso. Então, eu fui me acoplando à coisa do Direito, porque lei é muito chata. Uma lei é um horror. Mas só que você tem que ler, tem que entender. Eu também tenho uma certa facilidade com isso. Se eu não fosse nenhuma das duas coisas, talvez eu fizesse Direito, e, talvez eu fizesse alguma coisa na área de Comunicação. Eu dou muito palpite sobre comunicação visual, peças publicitárias. Na vida política eu mexo muito com isso. Nas minhas coisas, eu interfiro muito, e eu faço questão disso. Eu palpito. Às vezes corretamente, às vezes, nem tanto.

  7 – Como é que você lida com as críticas, principalmente no cargo que ocupa hoje?

R – Esse é um sentimento meio que contraditório, porque a crítica é fundamental. Dizer isso é mais fácil.  Trabalhar com ela é um pouco mais difícil, porque você tem todas as matrizes que levam à crítica. Você tem a crítica que é verdadeira, aquela que realmente acontece por insuficiência dos serviços públicos, ou por alguma coisa mal feita que o poder público fez. Essa é uma crítica verdadeira. Em uma grande parte, você tem a crítica que é oportunista. Eu sempre tentei, mesmo na oposição, fugir dela. Eu nunca me senti no direito de perceber alguma coisa que não dava pra fazer, mas eu fazia a crítica só pra poder ganhar um, sabe?  Ganhar o aplauso de um, mesmo sabendo que depois não poderia fazer. Eu sempre tentei fugir disso. Eu digo isso com muita verdade, com muita naturalidade. Eu não me sentiria bem fazendo esse tipo de coisa. Mas, a crítica oportunista existe muito quando quem está criticando, não consegue ter um projeto, ou seja, não consegue representar a idéia. Então, ela precisa descaracterizar a idéia que está ali sendo representada, está sendo implementada, através das coisas mais elementares, mais básicas. Por exemplo, um dos grandes problemas da cidade, do Estado, do Brasil é a saúde pública. Aqui em João Pessoa, nós temos muitos problemas ainda. Mas, a gente já caminhou demais. Eu sou da área de Saúde, eu sei. Nós caminhamos demais. Agora, o resultado disso não chega de imediato, porque não é uma assinatura pra chegar e dizer: “Olha, a partir de agora tá aqui um hospital novo. Agora faltam dez.” Não é assim. Mas eu sei que nós caminhamos. Alguns que passaram e que criticam, sabem disso. Mas, fazem a crítica buscando às vezes um cadáver, buscando, ah... “não foi atendido” ou “discutiu com o profissional”, o que é demais, né? Discussão com o profissional é o que mais tem, e que não depende da Prefeitura. Então se faz um tipo de crítica oportunista. A essa geralmente, eu dou uma resposta forte. A crítica vem, eu mando de volta, porque eu também não sou muito de engolir recados injustos, digamos assim. E se fizer, eu respondo.

Então é isso. Essa coisa de crítica, eu não vou dizer que é boa, que é bacana, porque ninguém lida bem com isso. Por quê? Porque tem umas que fazem você avançar, e tem umas que não. Agora, elas existem, e é importante que elas existam. É fundamental que elas existam, principalmente quando você está diante de uma concentração. Por mais que você possa fazer num determinado cargo, você jamais vai atender a plenitude. Portanto, sempre vai faltar coisa. Ao faltar coisa, você vai movimentar a imaginação e a necessidade das pessoas em querer que aquilo seja completo. Aliás, nós raciocinamos exatamente por conta disso. Nós queremos sempre mais. Essa é a lógica do ser humano.

8 -  E em meio a essa vida tumultuada, há tempo de conciliar o homem de vida pública com a família?

R– Pouco tempo... pouco tempo... muito pouco tempo. Como eu lhe disse, sou extremado, intenso. Eu por exemplo, não tenho férias, faz tempo que eu não tenho férias. E, as férias que eu tento ter, são a trabalho. Mas de repente, tem umas oportunidades onde vou trabalhar, e numa agenda maluca, de manhã, de tarde e de noite, vejo algo diferente. Ver algo diferente, já representa umas férias pra mim.

 (Entrevistadora interrompe)  - Mas eu falo do contato com sua família.

R- Eu sei. Aí é muito pouco. Eu sou divorciado. Tenho um filho, que mora no Rio de Janeiro. Minha mãe já tem 82 anos, e eu fico alguns intervalos sem poder vê-la. Então, às vezes a gente vai inaugurar alguma coisa e nos encontramos. Recentemente, inauguramos uma creche lá no Bessa. Aí, ela aproveitou, foi lá e a gente se viu.

(Entrevistadora interrompe) - Ah, então vocês se encontram também nesses eventos?

R – Ah..., ela deu um depoimento, eu acho que a coisa que mais me emocionou, acho que foi a coisa mais verdadeira durante a campanha. Ela deu um depoimento num vídeo, durante a campanha eleitoral, que foi um negócio... Eu desabei! Todo mundo se emociona né? Eu fui por esses dias à Barra de Gramame. Encontrei uma pessoa, e ela veio falar da minha mãe, do depoimento que ela tinha dado há três anos atrás. Porque, eu creio, mãe é mãe, né? Desde Gorki, mãe é mãe. E ela deu um depoimento conversando, sem saber que estava sendo gravada, porque ela tava esperando a hora de gravar. Ela começou a conversar, tal...tal...tal..., com o pessoal que estava lá... eu não tava presente. Ela começou a conversar. Aí ela disse “vamos gravar que eu tenho que ir embora”. Aí disseram a ela: “Não precisa mais não. Já foi” (risos).
  
9 - Qual era a profissão do seu pai?

R– Meu pai era meio que agricultor, às vezes pequeno agricultor, às vezes médio agricultor. Meu pai oscilava demais a sua condição econômica. Ela passava de uma para outra. Então, a gente tinha que se manter sempre, assim, de uma  certa forma, estável. E aí, como sempre, a mulher tem uma presença muito forte na família. E minha mãe era isso. Minha mãe ficava lá, na parte da economia e da condução da família, de forma muito presente. Mas, é isso. Minhas irmãs também. Uma boa parte está pelo mundo afora. São oito irmãs. Dez filhos. É um monte de gente. Mas eu reconheço essa coisa de ser ausente, porque não tem como... não tem como. Eu não consigo organizar minha vida, mas eles sabem... eles sabem. Eles se envolvem comigo de alguma forma. Quando tem campanha, minhas irmãs vêm de fora. Todo mundo é muito antenado, todo mundo é muito consciente.

10–   O que mais tira você do sério?

R – Ah, a falsidade! E o pior é que eu estou num meio que isso é a coisa mais comum, mais normal. Então, eu sou meio que bicho esquisito no meio desse processo. Em 92, quando ganhei a eleição para vereador, eu disse: “E agora?... e agora?” Eu não tenho oratória, digamos, tradicional. Eu não tenho isso. Falo muita coisa que vem de dentro. Acho que, três ou quatro vezes durante esses anos todos, eu fiz um discurso lido. Três ou quatro vezes. O resto é tudo que tá aqui dentro. Eu vou colocando pra fora. E nesse meio, a falsidade rola solta. Isso me deixa muito irritado..., muito irritado. Não me diga uma coisa que você não vai fazer, que eu também procuro não dizer. Não é nem pelos outros. É por mim, entendeu?

11-  E o que mais te deixa realizado?

R – Ah, tem muitas coisas. Se bem que eu sou muito exigente. Comigo, com os meus..., eu sou muito exigente mesmo. Com quem está ao meu redor também. E aí é que eu peço desculpas, mas eu sou terrível. Eu sou muito perfeccionista nas coisas. E quando acabo uma coisa, eu e quem está ao meu redor, sequer conseguimos, digamos assim, comemorar, porque já tem outras coisas. E aí eu chego e nem deixo a tropa descansar. Eu sou terrível nisso, nem deixo. Porque eu acho que o tempo nosso é agora, entendeu? Durante muito tempo muita gente, assim, “outsider”, muita gente fora do circuito dito oficial, ficou fora, não tinha espaço. Então esse pessoal começou entrar através da representação que eu tinha. Então, eu tenho uma sensação de geração muito forte, de dizer que o nosso tempo é agora. A gente precisa fazer muito e fazer bem feito, certo, pra poder, quando a gente sair, a gente olhar pra trás e dizer: “puxa, caminhamos bastante, foi bacana!” Aí, tem muita coisa que me deixa realizado, mas que, automaticamente, eu já me sinto sendo cobrado o tempo todo por outras coisas. Vou citar um exemplo. Não é babaquice, não é coisa do tipo...ah, discurso meloso, pra enganar, pra fazer tipo...mas, por exemplo: eu  entro hoje numa dessas creches que a gente tá construindo, ou então, mantendo; puxa a criançada tá muito bacana, sabia! Porque tem xadrez.  Por quê xadrez lá dentro? Porque a robótica? Estamos botando robótica na escola. Poucos municípios no Brasil têm isso... pouquíssimos. A gente tá implantando para agilizar o raciocínio, sabe? Ou seja, alimentação e percepção pra aprender as coisas, e isso é uma coisa muito importante. Muita coisa, também, pras pessoas idosas, sabe? Pessoas idosas têm uma revolução no mundo, que aconteceu na década de 70. A gente abriu um Clube da Pessoa Idosa. Antigamente, o idoso chegava aos sessenta e tava arrebentado, né? A família estranhando, porque era como se fosse um peso dentro de casa; a aposentadoria, a não-produtividade, a não-produção. Desde a França começou essa coisa de articulação de pessoas idosas, depois tomou conta da Europa toda, e chegou no Brasil, e, aqui você tem mais de cento e cinquenta grupos de pessoas idosas, que fazem ginástica, se reúnem, fazem música, e, aí, a gente começou a articular isso. E é muito bacana quando eles estão próximos. É o “fazer” que me realiza. Eu acho que é a essência. Mas me realizam, também, outras coisas. Me realiza ouvir uma música. Eu entro do carro, tenho que colocar uma música. Se estou em casa, tenho que colocar uma música.

12 -  E como é Ricardo Coutinho entre amigos? Você costuma se reunir com os amigos mais chegados?

R – Ah, eu vou dizer uma coisa..., eu hoje estou mais reservado. Hoje em dia, muito pouco. Por quê? Porque geralmente alguns de meus amigos estão dentro do trabalho. Então nos vemos de manhã, de tarde, de noite, com uma certa freqüência grande, e nos vemos no meio do estresse, né? Então, no meio do estresse é complicado, porque o pessoal fica com raiva de mim, e eu, com raiva também. Então, fica todo mundo... (risos) Mas, os amigos, amigos mesmo, a gente se gosta muito. Mas aí, durante esse tempo, eu fui meio que mergulhando, nessa coisa de trabalho, e fui saindo um pouco dos momentos de compartilhar com as pessoas. Eu, hoje compartilho com poucas pessoas. Isso é ruim, sabia? Isso é ruim. Precisava ser mais próximo deles pra poder me equilibrar um pouco mais.

13 - E por falar em equilíbrio, você pratica algum esporte ou alguma terapia, justamente pra aliviar essas tensões? Eu acho que você deve viver sob tensão e sob pressão todos os dias.

R– Constante... constante.... Eu vivo sob pressão porque, infelizmente, e aqui isso é muito presente na política, que é a pouca disputa de idéias. É mais a tentativa de pregar peças. Isso demonstra a desqualificação. Isso é muito ruim. Se você não tem capacidade de discutir uma idéia, e você tenta derrubar o outro puxando o tapete, criando uma situação que não corresponde à realidade, mas eu tô ali, criando, sabe?  Pregando peças?! Então você desqualifica isso. Isso gera uma tensão muito grande, porque você não está tratando uma disputa leal de idéias, o que é muito bacana, porque é empolgante, é apaixonante, e você vê o mundo! O mundo tá assim hoje, ou seja, por causa das idéias boas, ruins, malucas, não malucas,... idéias...
Então a política tem um pouco disso, infelizmente. Eu sou uma pessoa naturalmente muito estressada. Nos dois primeiros anos na prefeitura, eu até peço desculpas porque foi muito estresse,... foi um estresse que eu jamais imaginaria ter passado, jamais! Hoje, não. Hoje eu tô mais tranqüilo. Mas, eu não faço nenhuma terapia. Eu não tô fazendo nenhum exercício. Comecei a fazer, no ano passado, meio que me forçando a barra, porque era necessário fazer umas esteiras, fazer exercícios. Aí não deu, sabe, tive um estiramento. Aí eu paro, e a partir do momento em que eu paro, eu já prefiro dormir, do que fazer exercícios. Enfim, mas isso é uma coisa que eu estou em falta comigo mesmo.

 14 – E as horas de lazer, como é que ficam? O que é que você gosta de ler e de ouvir?

R- Eu tava passando um tempo sem ler e voltei. Terminei agora “Vale Tudo”, que é uma biografia de Tim Maia. Maravilhosa, maravilhosa, o cara era enlouquecido entendeu? Mas, ao mesmo tempo, quem achava que ele era simplesmente enlouquecido, não sabia que ele tava lá na frente, em uma série de coisas, como essa disputa com as gravadoras, os artistas. Ele, lá, lá atrás já tava fazendo as coisas funcionarem como hoje. Todo mundo tá querendo, criando sua editora, e ele lá atrás fazia isso. Li, já duas vezes, recentemente, “Tête-à-Tête”, que é uma biografia de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que é uma tese fantástica. Li “Terra Sonâmbula”, de Mia Couto, que é um moçambicano, texto que tem imagens belíssimas que ele relatava sobre a guerra civil em Moçambique.

E música?

R – Eu gosto de muita coisa..., eu gosto de muita coisa. Eu gosto mais de coisas que não são tão atuais, também porque eu não tenho essa coisa de tempo não. Música boa é música boa. Pode ser de cinqüenta anos atrás, ou pode ser recente. Eu adoro Bob Dylan. Eu acho o cara um poeta, o maior poeta musical do século vinte, indiscutivelmente. Eu gosto muito de Zélia Duncan. Aliás, ela teve aqui, nós a trouxemos e ela é um doce. É uma figura que tem uma poesia, na imagem do cotidiano. Ela transforma aquilo com uma doçura, e com uma agilidade tão fortes, né! As imagens e as circunstâncias da vida, ela transforma em poesia na qual eu viajo. Eu pego aqui primeiro o site dela, vou logo pra saber se ela tá perto, porque...eu...gosto demais dela. Ela é uma pessoa especialíssima. Beto Guedes eu acho fantástico, aliás, aquele povo ali de Minas, né? Lô Borges, Flávio Venturini, Clube da Esquina. Enfim, essa turma daqui, Chico César, um poeta bacana; Zé Ramalho, eu gosto muito. Eu gosto muito de Milton Dornellas, um grande musicista. Eu gosto demais de Adeildo Vieira, um poeta do cotidiano. Eu interajo muito com isso. Eu gosto muito, muito mesmo. Acompanho de muitos anos.

15– É sabido que você sempre prestigia os eventos culturais da cidade. É público e notório, sejam eles em qualquer segmento. Que recado você daria pras pessoas que não conhecem o significado de se prestigiar a cultura local?

R– O mundo só é muito porque ele se transforma. Isso é uma condição inata de nós humanos. Portanto, o mote e a meta é a transformação das coisas e a autotransformação, permanentemente, ou seja, é preciso transformar. Pra transformar pra melhor, você tem que mexer com a cultura, com os valores e símbolos acumulados por uma determinada coletividade, pra poder fazer com que, a partir de um passado, você tenha um futuro diferenciado, melhor, com mais qualidade. A cultura é fundamental. As artes são fundamentais. É por isso que não é simplesmente para que as pessoas tenham acesso às artes. É pra que as pessoas possam pensar melhor, se reconhecerem a partir daquilo que é produzido na sua coletividade, e que possam abrir suas cabeças pra outras experiências, pra outros gostos. É por isso que se você olhar hoje em João Pessoa, isso eu digo com orgulho; orgulho no melhor dos sentidos. Muito bacana. Porque isso está nas mentes. Você vai nas praças, todo final de semana, tá lá a cidade toda com teatro, com música, com banda, com tudo o que você possa imaginar, com hip hop, e mais, sem discriminação.
Eu sei que isso serve. E eu vou nos cantos. Aí, eu ouço, vou lá perguntando... Eu vi gente com sessenta e tantos anos que nunca tinha visto uma peça de teatro. Tava vendo lá no anfiteatro, na Praça Bela, lá no Funcionários II. E eles diziam: “Eu nunca imaginei estar aqui!”, e tava lá, no anfiteatro. Você vai em Mangabeira, é um turbilhão!  Parece uma panela de pressão, um vulcão. Lá todo mundo se encontrando. É o cara do skate com o outro que foi levar lá a criança pro parque infantil, e com outro que tava lá no show de música, na peça de teatro. Essa é a essência da coisa, e nós multiplicamos por nove aquilo que se gastava em cultura. E, eu acho que quem não consegue se ligar nisso, tá perdendo muita coisa. Ou seja, tá num patamar de inferioridade, porque precisa sempre dar um passo adiante. As pessoas precisam perceber aquilo que tá ao redor, porque Tolstói dizia uma coisa que, aliás, é o óbvio: “Se queres ser universal, canta a tua aldeia”. Se você quer entender das coisas, vá ver primeiro o que está do teu lado, o que tá sendo produzido lá. Vá ver aquilo que foi acumulado coletivamente em termos de cultura.

16 -  Do que é que você tem medo?

R – Eu tenho medo de não estar à altura das coisas que eu falo, que eu penso, que eu vou defender. Eu tenho medo disso, porque não é nem em relação aos outros, é em relação a mim. A mim internamente. Eu tenho medo de não respeitar, na essência. É que às vezes você está estressado, eu estou estressado, e, às vezes, eu chego num canto com quatro pedras na mão... Enfim, é o momento. Mas, eu tenho medo de desrespeitar a essência das pessoas, até porque eu abro um campo muito grande pra ser desrespeitado. Enfim, eu tenho medos, sim. Mas a vida é tão violenta, a velocidade é tão grande, que não dá nem tempo pra parar pra perceber o medo, sabe? E, no geral, eu sou corajoso. Eu encaro as coisas. Eu sou determinado. Ninguém menospreze, porque eu encaro. Eu tento sempre me superar, sabe? É um aspecto meu.

17 –  Mania, superstição, você tem alguma?

R– Não que me lembre.  Quer dizer, se eu me lembrar, eu evito, porque, por via das dúvidas, né? (risos) Porque eu acho que essas coisas fazem parte daquilo que eu vou definir como “conjunto de energias” que existem ao redor de cada um de nós, que existem na Terra. As nossas energias, os nossos quereres expressos em energia, eles não vão alterar e dizer: “essa escultura aqui vai sair daqui pra vir pra cá.” Não é isso. Não é física, não é metafísica. Não é estruturalmente. Não vão transportar as coisas. Mas elas criam uma espécie, talvez, de condições propícias para que, através delas, as coisas aconteçam, do ponto de vista mais das relações, do humor geral, do ponto de vista do pensamento positivo. Eu acho que existe uma influência que eu não sei explicar cientificamente. Mas existe influência nesse, sentido. Eu creio que quando muita gente fica achando que vai dar errado, eu acho que existe uma probabilidade maior de dar errado, do que de dar certo. Quando as pessoas se desarmam de querer fazer com que algo aconteça. O inverso, também, é positivo. Quando muita gente tá naquela de “olha, nós vamos construir isso, vamos fazer lá que tá mais fácil de fazer”. Agora ficar assim, com uma superstição, eu não tenho muito tempo pra parar pra perceber isso não.

  Vamos a um bate-bola:

 Seu livro de cabeceira...

R – São vários. Como eu tenho pouco tempo pra ler, eu leio, geralmente, de madrugada. Porque, infelizmente, a gente fica meio que bitolado. É televisão, depois tem que ver internet, porque senão a minha caixa de e-mails fica cheia, os e-mails voltam, aí eu tenho que dar conta deles, à noite, de madrugada, e, quando acabo, aí eu leio. E quando eu tenho que ler alguma coisa ao mesmo tempo, fora aquilo que eu leio de informações, de notícias,  aí eu faço assim: começo dois, três livros e vou... e vou lendo. Então eu não tenho um livro de cabeceira específico. Tem isso. Eu leio, termino, aí vou pegando outro, e outro...

Música preferida...

R- Livro, música, eu nunca costumo achar que tenho uma preferida, porque eu termino de ouvir a preferida, aí escuto outra, aí digo que essa também é preferida. Aí, eu não me sinto, na condição de ter realmente uma música. Teve uma pesquisa da revista Rolling Stone, que eu ouvi no rádio, e dizia assim: “Revista Rolling Stone vai fazer uma pesquisa sobre a música do século.” Aí eu pensei, “ah, se eu fosse votar nisso...” Eu não fui votar, mas se eu fosse na Internet atrás disso, atrás de como votar,  eu votaria em “Like a Rolling Stone”, do Bob Dylan. Aí ela ganhou, que os Rolling Stones também gravaram, mas é do Bob  Dylan. “Como Uma Pedra Rolante”, né! Eu acho uma composição belíssima. Mas, tem tanta coisa bonita, tanta coisa boa, que eu não me sinto no direito de colocar uma e desfazer de tantas e tantas coisas boas.

 Noite ou dia?

R – Noite. Adoro a noite. Tenho me escondido do sol ultimamente. Mas a lua, a noite sempre me atraem com uma força muito forte.

Ator e atriz, sejam do meio nacional ou internacional...

R – Eu acho Zezita Matos (atriz paraibana) uma atriz impressionante! Ela é uma fera. Eu acho o Lázaro Ramos um ator também muito interessante. Tem muita gente boa.

O lugar mais aprazível do mundo...

R- Eu gosto muito de alguns lugares. Eu acho que o principal deles é João Pessoa. Aquela descidazinha da Ponta do Cabo Branco pra Praia de Cabo Branco. Aquilo ali cura muitas doenças. Cura muitas ansiedades. Mas, eu conheci uma cidadezinha na França, eu achei uma delícia, chamada Tours, que é no Vale do Loire. É um vale onde os reis e rainhas lá da idade média construíram muitos castelos. Tem cento e sessenta castelos. Aqueles grandes castelos de filmes estão lá. E eu conheci isso lá, porque fui ver paisagismo. E eu gostei muito do que vi. Algumas coisas que eu vi em Barcelona. Tinha um arquiteto lá, no início da primeira metade do século passado chamado António Gaudí, que floreou a cidade toda.  Mas João Pessoa é uma graça. Cuidando direitinho, as pessoas se envolvendo, daqui a alguns anos, essa cidade vai conseguir continuar a se desenvolver, porque isso é um grande desafio! É pensar no futuro, agindo no presente. E, aquele espaçozinho ali (a descida da Ponta do Cabo Branco), é fantástico!

Filme preferido...

R - “A Chinesa”, de Jean-Luc Godard, que é um filme de l967, e eu não encontro nem na internet. Em 67, eu fui ver esse filme que tava passando no Estação Botafogo. Godard fez um filme que era basicamente sobre jovens da classe média, jovens da burguesia, revoltadíssimos com o dia a dia, o cotidiano, de saco cheio. E começaram semeando na China, por isso que o filme era “A Chinesa”, semeando na revolução cultural de Mao Tse Tung. Enfim, as pessoas começaram aquele movimento lá que redundou no Maio de 68. Ele (Godard) antecipou uma coisa que um ano depois estourou. Isso é impressionante. Isso é um filme também,  que se eu pudesse, eu veria de novo. Só que eu não encontro. Ninguém tem esse filme.

Prato preferido...

R– Eu gosto de peixe. Eu gosto de muita coisa. Eu vim comer arroz aos vinte e um anos. Por quê? Eu não sei o porquê. Eu não comia arroz. Passei minha adolescência todinha sem almoçar, porque eu preferia um sanduíche de pão com carne. Eu ficava assim o tempo todo. Quer dizer, é meio esquisito. Aí, fui fazer um estágio rural integrado pra concluir o curso lá em São José de Piranhas. E quando cheguei lá, encontrei quarenta graus. Encontrei um hospital que não tinha nada pra funcionar, mas funcionava. E eu, saído da universidade, tinha que me virar. Encontrei, também, uma seca braba. Então o que tinha lá era feijão, muito mais água do que caroço e arroz. Aí eu disse: ah, não! Eu passei a considerar arroz a melhor comida do mundo, ou seja, a necessidade é que faz o sabor. Eu gosto muito de comida japonesa; eu gosto de massas, eu gosto muito de pão, de carne, de peixe. Enfim, eu como que quase tudo. Quase que tudo.

Um homem admirável, e por quê...

R– Um homem admirável? Intelectualmente, Sartre.

Uma mulher admirável, e por quê...

R– Simone de Beauvoir (risos). Porque não pode ser outra. Eles são indissociáveis, certo? Após a morte, não dá pra falar em um, sem falar no outro. Mas, tem muita gente. Por exemplo, eu, sem qualquer complexo de Édipo, mas minha mãe é uma mulher admirável, sabe? Figura que você tá aqui, ela tá lá na frente.  Na década de sessenta, ela já tava na década de noventa; na década de noventa, ela já tava ... Ela é muito antenada. E vive, e sabe viver e deixa os outros viverem.

Uma viagem...

R– Uma viagem? Paris. E, uma futura viagem, eu vou ainda a Praga. Tive bem pertinho, mas, era uma agenda tão maluca, que eu não consegui sair um dia pra poder conhecer a cidade. Vou a Praga.

Eu amo...

R– Eu amo intensamente, quando estou amando.

Eu odeio...

R– Eu busco não odiar muito, quando me provocam indignação, sabe? Principalmente nas relações pessoais, nas enganações. Nessa parte, eu me refiro muito à coisa da política.

Uma palavra que defina o Brasil, na atualidade...

R– “Experiência”. O Brasil é um vulcão. O Brasil é diferente de tudo. Fizeram uma mistura aqui dentro. Uma mistura aconteceu, que pode dar a melhor coisa, e, pode dar, também as piores coisas. O Brasil é o único país do mundo que nunca teve uma ruptura. Isso é muito ruim. Uma sociedade se afirma com determinação, com perfil quando existem rupturas. Nas nossas vidas, a gente sempre rompe. Rompe uma relação, rompe um momento. O Brasil não tem. A Independência foi uma farsa, a República, foi outra farsa. Tudo um jogo das elites. A Revolução de 30, não foi bem uma revolução. A Revolução de 64 não foi uma revolução, foi golpe. E, por aí vai. A ditadura demorou vinte e tantos anos. Por outro lado, ele (Brasil) e a população são capazes de coisas extraordinárias. Até hoje, na Europa, você tem locais, aldeias que têm dificuldade de usar o Euro, anos e anos depois. No Brasil, se usou lá aquela URV. Todos os dias era um valor diferente, e não tinha quem errasse. Todo mundo acertava, ou seja, o cara podia não saber ler, mas... Quer dizer, isso é uma coisa fantástica! O Brasil, eu acho que tal qual Cuba, tem uma mistura de gente, de idéias, de civilizações, que pode dar, cada vez mais, uma coisa muito interessante para a Humanidade.

Um momento feliz...

R– Estar na varanda olhando o mar no entardecer. Aliás, o entardecer em João Pessoa... Poucas cidades têm um entardecer como esse daqui. Porque a cidade pega uma cor maravilhosa. Você quer saber de uma coisa que eu adoro fazer? Eu pego o carro, sozinho, e vou andar pela cidade, domingo ou feriado, de tardezinha. Você olhar, você descer pelo Centro Histórico, você perceber a cor do entardecer na vegetação da Epitácio Pessoa, na vegetação da Beira Rio, ali no Sanhauá... São coisas estonteantes, são coisas magníficas.

Um momento triste...

R– Momento triste? Alguns, né? Alguns... Não são para serem relembrados não.

Um esporte...

R– Eu adorava futebol. Mas hoje, se eu vejo uma partida, eu durmo. Mas eu ainda acho que é um esporte muito bacana. Você controlar os pés com precisão, acho fantástico isso.

Uma saudade...

R– Das épocas em que o mundo era um castelo a ser conquistado, e a ser completamente reformado. Saudade daquela sensação de poder infinito. Da adolescência, começo dos anos em que já estava adulto. A sensação de promover revoluções é uma sensação admirável, que não pode ser individualizada. Não pode ser individual. Porque, se for individual é um Dom Quixote, passa a ser mais um estereótipo. Mas, quando ela é coletiva, é uma sensação muito importante. Quando grupos de pessoas acreditam, seja nas artes, seja em qualquer área, mas acreditam, e têm uma sensação que não precisam nem combinar, convergem e vão mudar a coisa, vão mudar algumas coisas, que vão mudar o mundo. Isso é uma sensação maravilhosa. É muito parecida com o cheiro de chuva na terra. Muito parecida.

Deus...

R– Deus eu acho que tem uma relação direta com a natureza. Deus é a coincidência da criação. A criação de um amanhecer, a criação de um entardecer, a criação de uma geração, de um ser humano, a criação de uma árvore... As criações, né?  O que é um grande mistério. Deus tá presente ali, acima de tudo. Deus pra mim não tá resolvendo coisas pequenas não, sabe? Se meu carro quebrou..., se eu vou colocar uma peça aqui ou acolá, se eu vou comprar uma camisa. Não é muito por aí, não. Deus, pra mim, tá nesse outro estágio, nesse outro patamar da natureza, da qual nós fazemos parte, mas que é superior a todos nós.

Família...

R– Família? Deitar numa cama bem grande, sabe? Todo mundo amontoado junto. Família é isso. A gente fazia muito isso. E, ainda faz, né? Quando consegue se encontrar, automaticamente, fica todo mundo meio que... sabe? “encangado”, como se diz, em cima de uma cama.

Defina Ricardo Coutinho: o homem, o cidadão...

R– Sou uma pessoa que tenta, ainda, acreditar fazer o possível dentro do impossível. Tenta navegar em circunstâncias muito esquisitas. Ah, quando eu tava falando naquela coisa da sensação da adolescência, ou então, da sensação de querer mudar o mundo, é porque, nos últimos anos, particularmente, da década de noventa pra cá, essa sensação, foi meio que atingida. Deixamos de querer o impossível. Passamos a querer somente o possível. Aí, a mediocridade toma conta. Então eu tento, me fiscalizando, me enxertando de energia, eu tento querer o impossível, mesmo sabendo das limitações desse impossível. Mas, só de querer, já nos dá um gás, uma energia muito forte. Eu tenho um monte de defeitos. Enfim, eu sou como todo mundo e ao mesmo tempo, tô fazendo algumas coisas, sabe? Tô preparado pra deixar de fazer essas coisas e voltar a fazer outras tantas que eu fazia antes. Enfim, tento não permitir que essas coisas que eu faça descaracterizem a minha condição essencial, que é de gente, de pessoa. De ir numa padaria, de ter que comprar pão, eu tenho que ir comprar pão. Vou lá no supermercado, tenho que ir fazer feira. Eu preciso ir, né? Quer dizer, nem todo tempo eu tenho uma pessoa disponível. E também eu gosto, porque eu preciso preservar os espaços da pessoa, da pessoa Ricardo, sabe? Porque senão, daqui a um certo tempo, vai ser aquele negócio: “lá vai um ex-deputado!, lá vai um ex-prefeito!, lá vai um ex-político!, lá vai....” Então, você deixa de ser você, pra ser ex-alguma coisa. Eu preciso preservar um espaço pra ser eu mesmo. É a grande luta. Coisa que não é fácil, porque eu não passo só por você, passo pelas outras pessoas, e as pessoas têm uma dificuldade muito grande nisso, de reconhecer... Tá fazendo um trabalho? Tá, mas é um determinado trabalho que, independendo de você achar bom ou ruim, está ali uma pessoa que faz a mesma coisa que você, que gosta de tomar um vinho, gosta de ir num bar, gosta de ir num cinema. Gosto de fazer as coisas normalmente, como qualquer outra pessoa.

Uma palavra apenas que defina a cidade João Pessoa pra você...

R- Acolhimento

E pra concluir, uma frase...

R– “Viver para evoluir”. Alguns anos atrás, eu dizia: “Viver para revolucionar”. Mas eu tô dizendo: Viver para evoluir.

Isso é de Ricardo Coutinho?

R - Ah, isso é. Eu acho que sim. E eu acho, espero né, que seja de um monte de gente por aí. Não quero ser dono sozinho das coisas, porque vou ficar tão isolado, que, imagine a frustração. Quanto mais mentes, mãos e coração que tiverem nessas nossas caminhadas, mais o mundo vai ser melhor.