segunda-feira, 27 de setembro de 2010

La Dulce Nube Carioca


O conto abaixo é fruto de muita pesquisa e de um desafio proposto pelo caderno Prosa & Verso, do Jornal O Globo, através de um concurso intitulado "Contos do Rio", onde os participantes teriam que escrever um texto em forma de conto tomando como mote a foto acima, o Largo da Carioca, pela fotógrafa Márcia Foletto.
Segundo os organizadores do concurso, foram mais de 600 trabalhos inscritos, cada um mais incrível que o outro. O meu, infelizmente, não figura entre os dez finalistas, mas arrancou elogios de quem o leu até agora via e-mail. Eu até então não podia publicá-lo, pois o trabalho tinha que ser inédito. Enfim... agora, ele pode ver a luz! Espero que apreciem.


La Dulce Nube Carioca


“Vó, olha o meu algodão-doce! Parece uma nuvem no céu!”

Assim exclamava com olhos arregalados e um sorriso de orelha a orelha o jovem Pablo, na inocência de seus cinco anos. Parado no meio do Largo da Carioca, o garoto curtia a sua recém-descoberta, olhando para o alto com deslumbre e encanto aquele fundo azul infinito que abraçava as formas geométricas, o moderno e o clássico do concreto cinza quase que tocando o branco e macio algodão-doce, espetado num palito e erguido por sua mãozinha melada, enquanto a outra segurava com firmeza a mão inquieta de sua avó que, em meio às atribulações rotineiras, estava ali para qualquer coisa, menos para sonhar.

Havia um mundo à parte naquele lugar agitado. O garoto não entendia nada naquela confusão de homens engravatados, vendedores ambulantes e artistas populares. Era miúdo demais para saber das necessidades do ser humano. Tudo aquilo estava longe do cenário a que estava acostumado, e no entanto, o alvo de seu alumbramento também fazia morada ali, como parte daquele amálgama frenético. Por ele, em sua inconsciente ingenuidade, podia ficar horas naquela posição, devaneando com a cabeça virada para cima. É que criança quando mergulha sonho adentro não entende o motivo de um torcicolo ou dos perigos da vida, deixando-se levar por um mundo lúdico onde tudo é permitido, desde banhos de chuva, passando por unicórnios brancos e até mesmo uma nuvem de algodão-doce. Imaginação sem limite, qual balão que ganha alturas. Sem governo, como caminhão sem freio ladeira abaixo. A mente infantil é mesmo feita de possibilidades infinitas e generosas, assim como o íntimo do coração do Rio de Janeiro.

Fazia um dia lindo. Daqueles em que mesmo os seres que não têm por costume sorrir almejariam, nem que fosse por alguns minutos, sair de seus casulos espontâneos e brindar o sol. Dia de céu generoso e de um azul doído, daqueles que curam qualquer dor intrometida.

Àquela altura, a avó já nem lembrava o que tinha ido fazer no centro da cidade. Toda vez que passava por ali era essa inquietação por dentro. Por quê? De tão absorta em seus pensamentos, recordou-se menos ainda do compromisso que tinha, seja lá qual era, quando uma melodia familiar lhe chegou aos ouvidos e às lembranças, através da vitrola dentro da banca de jornais: “Solo estoy aquí en la ciudad. Paso entre la gente que se va que no ve mi sufrimiento buscándote, soñándote y tu no estás...”

Não! Aquela música não podia ter tocado novamente! Não ali, naquele lugar! Não a canção do lado de lá do continente, de onde um antigo amor vinha para cantá-la ao ouvido anos atrás, exatamente onde estava parada. Quanto tempo fazia desde a cena dos dois de mãos dadas andando por aquelas calçadas? Aquele amor de juventude, de porto, tão passageiro, tal e qual as formas de uma nuvem.

Aquilo machucava dentro do peito e lhe causava tremores e suores. Uma saudade do que devia ter sido e desapareceu como se nunca tivesse existido. Repleta de nostalgia, observava enternecida os olhos de jabuticaba do neto, ainda envolvido em sublime encanto pelos chapéus, dragões e até mesmo rostos formatados em série pelo seu algodão-doce pregado no céu. “Esse aí, pode até se livrar de sofrer por um amor perdido, mas vai viver de sonho, com a cabeça virada pra lua”, pensou ela, tentando sorrir para esquecer a dor cheirando à naftalina que aquela música latina insistia em trazer de volta. Teve uma certa inveja da felicidade do neto diante de coisas tão simples, lembrou-se de si mesma naquela idade e desejou olhar para o céu de uma forma bem particular para moldar, no calmo e breve passeio de uma nuvem, a forma de tudo o que queria que fosse a sua vida, do que faltou ser. Despiu-se então da vergonha de embarcar em outra dimensão sem sequer sair do lugar. Qual o problema? Todos os passantes estavam tão compenetrados em suas próprias vidas que sequer reparariam nesta viagem. Seu coração pedia para libertar-se. Então, olhou também para cima, procurando ver o que apenas olhos tão jovens e inocentes se propõem, e pegou emprestada a nuvem de Pablo. Aos poucos, foi invadida por um sentimento de paz inexplicável e voltou a ser criança. Sentiu a leve brisa daquela manhã a percorrer-lhe o rosto, enquanto a música latina de seus “ais” desaparecia ao longe, para dar espaço a um chorinho bem brasileiro e safado. Aquilo sim era a cara do lugar!

- Vamos embora vovó? Disse o garoto que, como toda criança, de repente enjoou do passatempo.

- Agora não querido, vamos ficar só mais um pouquinho.

Agora é que estava bom. Agora era ela quem viajava na doce nuvem. Depois de tantos anos, aquele instante trouxera um significativo alento à sua vida. Pareceu-lhe que precisava estar ali, naquela hora, com o seu neto de cinco anos a ensinar-lhe coisas de gente grande. E com um sorriso de quem ganhou o dia, permaneceu atenta a cada mudança de formas das brincalhonas nuvens e reapaixonou-se pelo Rio e pela vida, em pleno Largo da Carioca, ao som de “André de sapato novo”.