quinta-feira, 29 de julho de 2010

Para quem vai... Para quem fica


Oi pai,

Sabe, essa noite eu tive um sonho.
Nele, eu via você envolto em uma luz branca tão intensa que eu mal podia lhe enxergar. Mas uma coisa se mostrou com a maior nitidez do mundo pra mim. Você estava vestindo aquele seu sorriso largo de sempre, e me fitava com olhos inundados de paz.
Tentei estender-lhe a mão, mas você não me estendia a sua; apenas sorria.
Fiquei atordoada, perguntando o porquê de sua falta de resposta ao meu gesto. Você apenas me apontou para um espelho que como por encanto apareceu à minha frente e pôs-se a mostrar passagens de sua vida, que também é minha história.
Então, com um quê de espanto, vi-me absorvida por aquelas cenas: o bendito dia em que você veio ao mundo, seus verdes anos, sua adolescência, sua fase adulta. E do espanto, passei ao êxtase com aquela feliz oportunidade de também vivenciar experiências tão somente suas e ao mesmo tempo tão reais, pois eu ouvi músicas e risos. Senti perfumes e gostos. Tive sentimentos de ternura, acolhimento e também de tristeza. Senti a paixão ao primeiro olhar e o amor desvelado por minha mãe no decorrer da vida a dois de vocês, por tantos e tantos anos. Senti o tremor da emoção única de cada filho que vinha ao mundo, assim como o peso da responsabilidade de sustentar uma família e preparar a prole para a vida.
À medida em que eu via, ouvia e sentia a sua trajetória passando pelos meus inquietos e arregalados olhos a fim de não perder nenhum lance, meu atordoamento inicial ia dando lugar à alegria infinita, e agradeci a Deus pela bem-aventurança de testemunhar aquele momento sem par.
Mas de repente, os tons coloridos e luminosos do espelho se fecharam num cinza-chumbo. Olhei para onde o senhor estava e vi apenas uma densa névoa. Meu coração se entristeceu. Tudo ficou pesado e gélido, como quem deixa algo muito precioso escapar das mãos e ir ao chão para se transformar em mil pedaços.
A última coisa que presenciei ainda no espaço onírico, foi o som de estilhaços de vidro. Acordei de sobressalto com um nó na garganta, coração aos pulos, um aperto no peito e uma vontade imensa de chorar. Andei em desespero por toda a casa e faltava-me o ar. Olhei em todos os cômodos, penetrei por todas as frestas e senti um imenso vazio a me tomar conta. Eu não te encontrei pai!
Onde você poderia estar naquele meu momento de aflição extrema? E por quê eu não tinha o seu colo acolhedor, a sua mão a afagar-me os cabelos e nem a sua calma e doce voz a me dizer que tudo ficaria bem?
Fiquei sentada por infindáveis minutos no sofá da sala vazia e escura. Era alta madrugada. Mais um dia despontando e eu ali, a olhar os retratos nas paredes, em cima dos móveis, a sentir o seu cheiro. Cheiro de minha infância, de minha vida inteira. Cheiro de pai... de meu pai!
Totalmente entregue a estas lembranças que dilaceravam minha alma de tanta saudade, deixei que silenciosas lágrimas invadissem e tomassem conta de todo o meu ser.
Já vencida pelo cansaço, ouvi uma voz suave lá dentro de mim:
 “Deixe-o ir!”.
Como se eu tivesse consciência do que estava escutando, dei um profundo suspiro, enxuguei minhas lágrimas e falei:
“Deixo!”
Meu pai, não sei explicar de onde veio aquela voz que tanto me confortou com apenas uma única frase, e nem tampouco o porquê de minha resposta. Só sei que se fez luz na sala onde antes só havia escuridão, e o espelho no qual testemunhei o desenrolar de sua linda história apareceu novamente diante de mim, trazendo todas as cores do arco-íris em matizes que nunca saberei descrever, tamanha beleza e encanto.
Eu havia entendido a mensagem!
O senhor, meu pai, foi tão amado em vida, tanto nos amou e cumpriu a sua missão que não deixou nada pendente em sua luminosa existência cá na Terra; que você agora está mais próximo de Deus do que eu poderia supor, e que Ele agora precisa de ti para dar continuidade a belos trabalhos, ajudando a quem precisa de alento e elevação espiritual. Compreendi também que ainda irei chorar muitas vezes, necessitando e buscando sua presença em todos os lugares onde eu estiver. Mas sei também que o senhor estará comigo, guardando minhas lágrimas, guiando-me pelos caminhos da vida e beijando-me a face, a cada brisa da manhã. E eu continuarei a tê-lo como meu melhor amigo e refúgio nas horas mais incertas. E por fim, ainda partilharei contigo as imensas alegrias que enfeitarão o meu destino, assim como de todos os que lhe são caros.
Isso com certeza não é um adeus.
Vamos chamar de “até breve”. Pois agora eu tenho a consciência de quando posso estar contigo, até sentir novamente o calor do teu abraço...
SEMPRE! 

domingo, 25 de julho de 2010

O hino ao amor de um pequeno pardal


                 Hoje, 11 de maio de 2008, domingo, dia das mães, vi um filme o qual estava me devendo havia algum tempo: “Piaf: Um hino ao amor”.
          Confesso que o adiei por muitas vezes, bem como subestimei a sua grandeza, e agora sinto-me inebriada, sem palavras. Escrevo este artigo com lágrimas que insistem em não parar de cair, por ter acabado de vivenciar a experiência de ver uma bela obra-prima do cinema. Estou um tanto desorientada ainda pelas informações que me foram chegadas através da Sétima Arte, um verdadeiro poema que esconde todos os sentimentos de uma mulher. Já tinha ouvido falar de Edith Piaf, a maior cantora francesa de todos os tempos, mas nunca havia me interessado em saber ao menos uma linha de sua intensa, tumultuada e trágica vida. Fui tomada de assalto pela delicadeza, e ao mesmo tempo pelo corte profundo, em carne viva que este filme faz em qualquer pessoa que tenha um mínimo de sensibilidade.
            Vi uma atriz espantosa, Marion Cotillard, ganhando merecidamente o Oscar de 2008 pela sua atuação como Edith Piaf. Para mim, que compartilho do mesmo ofício, não pude encontrar uma palavra sequer que traduzisse o mergulho de cabeça que Cotillard dá no personagem, com a propriedade de quem encarnou de verdade, a alma da cantora. Uma verdadeira aula de interpretação. Mais do que isto, um exemplo de entrega na profissão.
             Vi também uma cantora que viveu até os limites de seus sentimentos e atitudes, indo do inferno ao céu em questão de segundos, sob uma constante corda bamba, somente encontrando equilíbrio e alguma sanidade quando estava exposta no palco, aos olhares e ouvidos atentos, ávidos pelos seus trinados únicos. Uma voz que se calou tão precocemente em 1963, aos 47 anos, maltratada pela vida com privações na infância, rotina boêmia e desregrada, demasia de vícios como o álcool e a morfina, além de inúmeras tragédias pessoais que permearam toda a sua vida. Após o filme, ainda sob efeito “hipnótico”, entreguei-me ao feitio deste artigo e pesquisas sobre a fantástica vida deste verdadeiro mito da música. Encontrei um texto, onde há um trecho que descreve de forma bastante sucinta a sua natureza: “Rosto redondo, expressivo mas sem beleza, cabelos em desalinho, vestido longo escuro, pequerrucha. Sob a luz do palco ela era indomável, irresistível, arrebatadora. Flutuava ao microfone, como um beija-flor frente a uma rosa.”
           Nascida Edith Giovanna Gassion, devido ao seu tipo físico mignon e magro, além de uma voz comparada à de uma ave, seu primeiro empresário - o qual lhe estendeu a mão, tirando-a da miséria das ruas de Paris para o estrelato - dera-lhe o apelido de “piaf”, que quer dizer “pardal”.
        Diante de tal impacto causado no público por aquela figura franzina, o pequeno pardal ganhou o mundo, admiradores, amores e todo o porvir do mundo da constelação de artistas que se destacam. Convém lembrar que nem só de flores vive este seleto mundo de glamour.
              Mundialmente famosa e uma das mais tocadas até hoje, “La vie em rose” talvez fosse o sonho de Piaf, traduzido em forma de canção. A vida em cor-de-rosa. A dela tomou caminhos contrários aos da música de sua autoria. De cor-de-rosa, nada teve.
          Vencida por uma batalha para cantar e sobreviver, viver e amar; envolta em seu mundo arredio, rebelde, egoísta e ao mesmo tempo, tão carente e frágil, Piaf cerrou os olhos, levando consigo a interpretação rasgada de uma música que, segundo ela própria, traduzia toda a essência de sua vida, sem arrependimentos:
             “Não! Nada de nada...
              Não! Eu não lamento nada...
              Nem o bem que me fizeram
              Nem o mal - isso tudo me é igual!
              Não, nada de nada...
              Não! Eu não lamento nada...
              Está pago, varrido, esquecido
              Não me importa o passado!...”
             (Tradução de um trecho de “Non, je ne regrette rien”)
        Edith Piaf foi enterrada em um cemitério parisiense chamado Père-Lachaise, local que curiosamente conheci em 1998, durante uma viagem de estudos pela Europa. Uma pena que, tendo visto túmulos de personalidades como Alan Kardec, Jim Morrison e Chopin, deixei passar batido a última morada desta ilustre dama.
         Por mim, ficaria aqui durante horas falando sobre um filme que me deixou encantada. Porém, deixo para o leitor a tarefa do prazer de desbravá-lo. Deixo apenas o destaque especial de um belo trecho do filme, onde uma jornalista faz uma pergunta muito simples à diva:
             Jornalista: Se fosse dar um conselho a uma mulher, qual seria?
             Piaf: Ame
            Jornalista: A uma jovem?
             Piaf: Ame
            Jornalista: A uma criança?
            Piaf: Ame"
            Após esta cena, o silêncio me parece a melhor saída.
            Marion Cotillard, você me arrebatou vestindo a pele de Piaf.
         Edith Piaf, você tem em mim a partir de agora uma admiradora de sua arte, para sempre.