Oi pai,
Sabe, essa noite eu tive um sonho.
Nele, eu via você envolto em uma luz branca tão intensa que eu mal podia lhe enxergar. Mas uma coisa se mostrou com a maior nitidez do mundo pra mim. Você estava vestindo aquele seu sorriso largo de sempre, e me fitava com olhos inundados de paz.
Tentei estender-lhe a mão, mas você não me estendia a sua; apenas sorria.
Fiquei atordoada, perguntando o porquê de sua falta de resposta ao meu gesto. Você apenas me apontou para um espelho que como por encanto apareceu à minha frente e pôs-se a mostrar passagens de sua vida, que também é minha história.
Então, com um quê de espanto, vi-me absorvida por aquelas cenas: o bendito dia em que você veio ao mundo, seus verdes anos, sua adolescência, sua fase adulta. E do espanto, passei ao êxtase com aquela feliz oportunidade de também vivenciar experiências tão somente suas e ao mesmo tempo tão reais, pois eu ouvi músicas e risos. Senti perfumes e gostos. Tive sentimentos de ternura, acolhimento e também de tristeza. Senti a paixão ao primeiro olhar e o amor desvelado por minha mãe no decorrer da vida a dois de vocês, por tantos e tantos anos. Senti o tremor da emoção única de cada filho que vinha ao mundo, assim como o peso da responsabilidade de sustentar uma família e preparar a prole para a vida.
À medida em que eu via, ouvia e sentia a sua trajetória passando pelos meus inquietos e arregalados olhos a fim de não perder nenhum lance, meu atordoamento inicial ia dando lugar à alegria infinita, e agradeci a Deus pela bem-aventurança de testemunhar aquele momento sem par.
Mas de repente, os tons coloridos e luminosos do espelho se fecharam num cinza-chumbo. Olhei para onde o senhor estava e vi apenas uma densa névoa. Meu coração se entristeceu. Tudo ficou pesado e gélido, como quem deixa algo muito precioso escapar das mãos e ir ao chão para se transformar em mil pedaços.
A última coisa que presenciei ainda no espaço onírico, foi o som de estilhaços de vidro. Acordei de sobressalto com um nó na garganta, coração aos pulos, um aperto no peito e uma vontade imensa de chorar. Andei em desespero por toda a casa e faltava-me o ar. Olhei em todos os cômodos, penetrei por todas as frestas e senti um imenso vazio a me tomar conta. Eu não te encontrei pai!
Onde você poderia estar naquele meu momento de aflição extrema? E por quê eu não tinha o seu colo acolhedor, a sua mão a afagar-me os cabelos e nem a sua calma e doce voz a me dizer que tudo ficaria bem?
Fiquei sentada por infindáveis minutos no sofá da sala vazia e escura. Era alta madrugada. Mais um dia despontando e eu ali, a olhar os retratos nas paredes, em cima dos móveis, a sentir o seu cheiro. Cheiro de minha infância, de minha vida inteira. Cheiro de pai... de meu pai!
Totalmente entregue a estas lembranças que dilaceravam minha alma de tanta saudade, deixei que silenciosas lágrimas invadissem e tomassem conta de todo o meu ser.
Já vencida pelo cansaço, ouvi uma voz suave lá dentro de mim:
“Deixe-o ir!”.
Como se eu tivesse consciência do que estava escutando, dei um profundo suspiro, enxuguei minhas lágrimas e falei:
“Deixo!”
Meu pai, não sei explicar de onde veio aquela voz que tanto me confortou com apenas uma única frase, e nem tampouco o porquê de minha resposta. Só sei que se fez luz na sala onde antes só havia escuridão, e o espelho no qual testemunhei o desenrolar de sua linda história apareceu novamente diante de mim, trazendo todas as cores do arco-íris em matizes que nunca saberei descrever, tamanha beleza e encanto.
Eu havia entendido a mensagem!
O senhor, meu pai, foi tão amado em vida, tanto nos amou e cumpriu a sua missão que não deixou nada pendente em sua luminosa existência cá na Terra; que você agora está mais próximo de Deus do que eu poderia supor, e que Ele agora precisa de ti para dar continuidade a belos trabalhos, ajudando a quem precisa de alento e elevação espiritual. Compreendi também que ainda irei chorar muitas vezes, necessitando e buscando sua presença em todos os lugares onde eu estiver. Mas sei também que o senhor estará comigo, guardando minhas lágrimas, guiando-me pelos caminhos da vida e beijando-me a face, a cada brisa da manhã. E eu continuarei a tê-lo como meu melhor amigo e refúgio nas horas mais incertas. E por fim, ainda partilharei contigo as imensas alegrias que enfeitarão o meu destino, assim como de todos os que lhe são caros.
Isso com certeza não é um adeus.
Vamos chamar de “até breve”. Pois agora eu tenho a consciência de quando posso estar contigo, até sentir novamente o calor do teu abraço...
SEMPRE!