quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Asas do Caos

No meio deste ano, Ícaro, meu irmão mais novo, participou de um ato muito lindo. Ele, como médico, envolveu-se em uma ação humanitária do Exército para auxiliar as vítimas das enchentes no interior de Pernambuco, decorrentes das fortes chuvas que castigaram aquela região entre abril e maio. Fiquei tão tocada pelo seu gesto que, movida pela emoção, escrevi um conto que também foi inscrito no concurso de contos Newton Sampaio, no Paraná. Com base em alguns relatos do próprio Ícaro, desenvolvi o texto que agora divido com vocês aqui em meu blog. Deixo para vocês a imaginação correr solta para separar o que foi real e está simbolizado através das fotos que ajudam a contar a história e o que é fruto da minha cabeça. Eu só sei que sou orgulhosa demais da conta pelo irmão que tenho. Espero que gostem. 








ASAS DO CAOS


           Quatro da manhã.
            Ícaro abre os olhos sonolentos e pesados. O descanso vital passou galopando. Quanto tempo conseguiu dormir de braço dado à insônia insistente? Duas horas? Três? Não importava muito àquela altura do amanhecer. Mesmo sem a disposição necessária, tinha que começar o dia no exato momento em que o despertador anunciava o desfazer de sonhos. Se deixar o sono e o cansaço tomarem conta, sabe que vai até as onze ou mais, entregue aos lençóis e ao aconchego de seu quarto.
            Em cima de uma cadeira, o uniforme verde-oliva passado pelas mãos orgulhosas de sua mãe lembrava-lhe do compromisso do dia. Aos pés da cama, o velho coturno aguardava as instruções de para onde levar o seu dono.
            - Bem, o que eu não resolver, o café resolve, - pensou o médico aspirante do exército, ajustando no corpo a sua farda engomada, enquanto sorvia bem devagar a bebida que descia por suas entranhas, acordando-o para o mundo.
            O frio de manhã cedinho cortava-lhe o rosto quando saiu de casa com destino à base militar. Somente ele caminhava nas ruas àquela hora, ouvindo pela vizinhança apenas os trinados dos pássaros chamando a todos para a vida lá fora, que já estava a pleno vapor.
            Concentrou-se em sua missão e seguiu em frente sentindo a energia suave do sol, cujos raios atravessavam as copas das árvores e lhe aqueciam a face.
            Pela primeira vez em sua vida iria voar de helicóptero. Já havia viajado de avião muitas vezes, mas aquela novidade invadia o seu íntimo como algo muito desejado desde os tempos de criança, e a ansiedade, por fim, tomou conta dos instantes seguintes.Já na base aérea, juntou-se aos colegas para ouvir atentamente as instruções de seus superiores e entrou na aeronave.
            A inquietação mostrou a sua real face quando enfim o pássaro de aço levantou voo. O barulho ensurdecedor daquela parafernália só não foi maior do que a emoção de testemunhar o distanciamento do solo e enxergar lá de cima as casas, prédios, carros, plantações e florestas, tal e qual miniaturas de maquete.
            Enquanto voava, Ícaro lembrou-se de seu homônimo da mitologia grega, que cruzou afoitamente o firmamento e teve as suas asas de cera derretidas devido à proximidade do sol. Aquela lembrança deixou-o incomodado. Sentiu um arrepio na espinha ao dar-se conta de onde estava e tentou pensar apenas na parte boa da malfadada história que se igualava à sua: o fascínio em ganhar os ares.
            Em meio ao trajeto aéreo, chegou a sentir vergonha de si mesmo ao flagrar-se em total alumbramento diante daquela imensidão azul salpicada de nuvens, pois percebeu que o mundo que o aguardava, nalgum lugar lá embaixo, apresentava uma paleta de cores nada alegres, que iam do cinza ao marrom em todos os seus matizes. Ao acordar daquele canto de sereia, deparou-se com uma realidade que seus olhos se recusavam a aceitar, por mais que estivesse preparado e direcionado para aquela situação. Depois de passar por uma nuvem mais densa, pôde ver com espanto o cenário devastado pelas cheias no interior de Pernambuco. A cidadezinha lá embaixo ganhava contornos aterradores, parecendo-se mais com uma massa compacta de lama. Pontes destruídas que impossibilitavam que a ajuda viesse por terra, casas varridas pela força das chuvas e outras tantas já em ruínas irrecuperáveis. Quase nada permaneceu de pé e o céu dava recados de que as águas não dariam trégua nem tão cedo.

            Com o helicóptero, enfim, em terra firme, todos se encaminharam às suas atribuições humanitárias e o médico rumou para o posto de saúde, onde colegas revezavam-se no atendimento aos desabrigados e distribuição de alimentos, água potável, roupas, cobertores e remédios, doados de todas as partes do país por pessoas sensibilizadas com toda aquela tragédia.
            Lidar com situações adversas já fazia parte de sua profissão havia muitos anos, mas aquela situação diante de seus olhos tocou-lhe de uma forma que jamais saberia explicar. Em uma simples volta pela cidade, Ícaro viu o verdadeiro significado da palavra “solidariedade”, ao ver muitos moradores darem um lar a quem perdeu tudo. Os meninos jogando bola em meio ao lamaçal das ruas e em frente aos escombros do que um dia foi uma escola mostravam que a esperança não havia esquecido aquele lugar. As pessoas sorriam um sorriso triste e, ao mesmo tempo, alegre, ao ver que não estavam de todo desamparadas. Famílias inteiras se amontoavam nos abrigos improvisados. Muitos carregavam no corpo e na alma lembranças de quem perdeu muito mais do que lares e pertences.
            Ícaro começou o atendimento no precário ambulatório. Na fila de espera, uma criança com larvas na cabeça e sinais de desnutrição; uma adolescente grávida, prestes a parir; dois pacientes portadores de leptospirose; uma mulher moribunda colocada isoladamente em uma maca, a gritar fracamente pelos seus documentos, fotos e lembranças. As horas passaram e percebeu que era interminável aquele mundo de gente sofrida, que vinha de todas as redondezas, a buscar um punhado de dignidade das mãos dos voluntários recrutados. Mas foi um jovem aparentemente de sua idade que mais lhe chamou a atenção. Estava sentado olhando para o nada, com a aparência de quem não tomava banho havia muitos dias. Foi dito ao doutor que aquele moço estava naquela catatonia desde o dia em que o mundo decidiu que aquela cidade não mais existiria.
            - Bem, vamos ver o que posso fazer por ele, - pensou o médico.
            Aproximou-se devagar do jovem, que não esboçava reação alguma. Sequer piscava seus olhos enevoados. Apenas olhava para o nada e mantinha sua respiração com longos suspiros.
            - O que posso fazer por você? - perguntou Ícaro.
            Nenhuma resposta veio. Tentou então novamente:
            - Se você não disser o que tem, vai ser bem difícil ajudá-lo e eu estou aqui para isso.
            Na completa falta de reação do jovem, o doutor então pediu:
            - Se sentir necessidade de qualquer coisa, estarei logo ali naquela mesa, está bem?
            Deixou de lado o jovem estático e foi cuidar dos inúmeros outros afazeres.
            E assim correram três dias de voluntariado. Quanto mais as horas avançavam, mais Ícaro assistia estupefato a todas as mazelas provocadas pela fúria da natureza e agradecia por ter forças para ajudar ao próximo com dedicação e desprendimento.
            Em seu último dia na cidadezinha devastada, estava no ambulatório sentado e imerso em suas anotações de tudo o que vira em sua estada naquele lugar, quando sentiu alguém tocando seu ombro. Olhou para trás e viu o jovem que até então estava mergulhado em inércia e tristeza.
            Surpreso, Ícaro falou:
            - Então, que bom vê-lo de pé e caminhando. Diga-me: o que posso fazer por você?
            - Não sei se você conhece o que se passou comigo, - disse-lhe o jovem em tom suave. Eu estava a dois dias de meu casamento quando o céu desabou em água e destruiu o meu mundo, levando aquilo que mais me dava gosto em viver: o meu amor. As cheias levaram Ofélia para onde só Deus sabe. Muitas pessoas daqui viram-na ser levada pela correnteza, mas ninguém até hoje encontrou o seu corpo. Então, seu doutor, pior do que saber que meu amor nunca mais irá voltar para os meus braços, é a certeza de que nem o corpo eu terei direito de enterrar.
            Duas grossas e brilhantes lágrimas caíram no rosto do jovem, coberto de poeira e dor.
            - Se o senhor queria me ajudar, já o fez escutando a minha história. Duvido que para isso o senhor tenha algum remédio. Mesmo assim, obrigado por tudo. Bem, acho que existe uma coisa que o senhor pode fazer, sim.
            - O que é?
            - Cuide bem do seu amor, se tiver um.
            E começou a caminhar em direção aos demais moradores do lugar, até desaparecer no meio deles.
            Acostumado a salvar vidas e confortar aqueles que estão em agonia, Ícaro sentiu-se inútil e desejou mais do que qualquer coisa dar algum alento àquele pobre homem.
            O helicóptero aguardava os voluntários para levá-los com segurança para casa. A missão não tinha sido nada fácil para nenhum deles e cada um foi tocado profundamente por aquelas visões de caos e desespero.
            Ao levantar voo e distinguir lá de cima as ruas e praças enlameadas da cidadezinha quase que totalmente destruída, Ícaro pôde ver ao longe o rapaz que contara a sua triste história, vagando pelas ruínas como quem deseja recomeçar a vida, mas não sabe por onde e nem como. Lembrou-se do conselho dado por quem perdeu algo tão precioso e tirou do bolso da já amarrotada farda a foto de sua noiva. Enternecido, o jovem médico suspirou e deixou também duas lágrimas virem à sua face. Já nem mais se importava se estava voando, com o espetáculo de cores do pôr-do-sol bem à sua frente. Seus olhos só queriam saber naquele instante de um outro tipo de céu, de longos cabelos louros, sardas e olhos castanhos. Se o personagem da mitologia grega voou para o horizonte e tomou uma atitude impensada que lhe custou a vida, o médico já não se deslumbrava tanto com aquele magnífico espetáculo do firmamento. Depois de tanta tragédia vista de perto, a maior certeza que possuía na vida, naquele exato momento, era o destino de sua rota.