Quem costuma ir ao Teatro, principalmente para ver comédias, quase nunca atenta para imaginar o que acontece nos bastidores. Veja bem, não falo de bastidores que envolvem refletores, camareiros, maquinistas, cenários e todo um sem-fim daquela parafernália que dá asas à nossa imaginação, até porque caberia aí um texto à parte. Falo de uma realidade igualmente complexa e não menos interessante, que é a vida do outro lado do espelho, o extra-sonho desses verdadeiros mensageiros da alegria. Falo com um certo conhecimento de causa, pois vivo há 12 anos a dor/delícia, a bem-aventurança de fazer parte deste universo onírico e ao mesmo tempo, tão palpável. Também sou atriz e posso afirmar com todas as letras; sem desmerecer a minha formação dramática, depois que enveredei pelos caminhos da comédia, não conheço lenitivo mais eficaz para todos os males que afligem nossa condição humana, que não seja o riso.
Em meio ao brilho esfuziante dos figurinos; à diversidade de caras e bocas; por trás da mesclagem pálida e colorida da maquiagem, esconde-se uma realidade tão mais parecida com a sua, caro leitor, do que sonha a vossa vã filosofia. Por trás da cortina, antes do terceiro sinal, escondem-se dores, amores, sonhos, realizações, planos, tristezas, problemas, soluções, decepções... um rio de sentimentos a desaguar no mar da cena aberta. No momento iluminado da ribalta, as divindades que regem o solo teatral concedem ao ator o dom de presentear a si mesmo e aos espectadores momentos de pura e intensa magia. Mas, como tudo na vida, isso tem um preço: o alheamento dos problemas mundanos. Ambas as partes – ator e espectador - se fundem numa saborosa e salutar comunhão, desligando-se por alguns preciosos instantes do mundo louco que aguarda pacientemente lá fora. A tônica deste texto é o estado de espírito com que cada ator se entrega ao seu ofício. Particularmente na comédia, é sabido que para se passar humor e graça com verdade, é preciso que se esteja imbuído de emoções como prazer e alegria. Bem, isto é a teoria, embora a prática às vezes se mostre totalmente contrária. Já presenciei verdadeiras demonstrações de puro amor à arte, onde o que se esconde por trás da pintura é exatamente o oposto. Já vi atores em uma comédia do tipo besteirol que não se falavam ou até mesmo não se suportavam fora de cena, tendo que se entregar um ao outro sob os refletores em uma falsa, mas convincente cumplicidade, fazendo o público ir ao delírio, explodindo em gargalhadas.
Já vi outros tantos terem que terminar um espetáculo logo após um assalto à mão armada à bilheteria do teatro, com direito a sons de tiros e total apavoramento da platéia. Neste caso, o susto pela violência soma-se ao fato de não poder levar para casa neste dia, o já minguado apurado de quem (sobre)vive da arte. Terminar uma peça desta maneira requer carga triplicada de adrenalina, disciplina, respeito ao público e a si mesmo, pois o que está exposto naquele instante, em carne viva, é a alma nua do artista, sem qualquer defesa. Eu mesma já experimentei algumas agruras, como dar início à função completamente febril e muito doente da coluna, ou com o pensamento distante por motivo de enfermidade de alguém muito próximo e querido, entre tantas outras razões alheias à minha vontade. Porém, é incrível constatar o quanto somos abençoados e protegidos ao pisar naquele solo sagrado. E este sentimento só é conhecido por quem já pisou ali no palco, fez reverências ao público e foi reverenciado de volta.
Já vi ator enterrar pai, filho, ou colega de cena à tarde, para no mesmo dia, à noite, transformar a dor pungente e latejante em força sobre-humana, no intuito de levar àquelas pessoas que cumpriram o ritual de sair de suas casas exatamente o que elas foram buscar: um alento para os momentos pesados da vida. O esforço é mais do que válido, pois não há gratificação interior maior do que fazer alguém feliz, que dirá uma platéia inteira. Ossos do ofício. Com o coração sangrando em velado silêncio, o ator consegue o feito de se render à sobrevivência da própria loucura, mesmo que haja o inevitável desabamento quando as cortinas se fecharem. Dali, do seio do teatro, em todas as apresentações, ele morrerá e ressurgirá igual Fênix: das cinzas, à redenção.
Convém lembrar aqui que fazer rir é uma arte dominada por poucos e tentada pretensiosamente por muitos. É a habilidade de reunir diversos elementos, tais como ritmo, agilidade e verdadeira vocação e paixão pelo que se propõe a fazer. Não é nada fácil. Fazer chorar? Consegue-se isto em dois tempos. Diante das mazelas e lutas do dia-a-dia, as pessoas desenvolvem uma sensibilidade e ao mesmo tempo uma dureza tamanha que já vêm com o espírito propício para reagir através de lágrimas.
Não posso deixar de citar aqui somente um dos inúmeros ensinamentos de meu mestre Bemvindo Sequeira, com quem tive a honra de trabalhar durante dois férteis anos. Bemvindo é, sem dúvida alguma, um dos maiores atores cômicos existentes no Brasil. Em seu livro intitulado “Humor, Graça e Comédia”, Bemvindo atenta para a função do comediante: “Re/ler a tragédia humana, re/conhecê-la e re/contá-la para a platéia, aproximando estranhos, aliviando fardos, assimilando o mistério da existência”. Tenho a exata certeza de que você, caríssimo leitor, irá refletir e considerar que, a partir deste momento, conceberá um espetáculo de comédia com um outro olhar. E assim, munido da exata noção do que se passa pelas janelas da alma de um artista, seguirá a eterna comunhão. Artista e platéia. Dois em um. Seres humanos com asas de cera que voam inebriados até o sol, para depois cair de volta na realidade, ao menos um tanto mais felizes.
"Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo...
Quando Ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez, tudo era água. Na terceira gargalhada apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ele ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma."
(De um papiro grego).
Em meio ao brilho esfuziante dos figurinos; à diversidade de caras e bocas; por trás da mesclagem pálida e colorida da maquiagem, esconde-se uma realidade tão mais parecida com a sua, caro leitor, do que sonha a vossa vã filosofia. Por trás da cortina, antes do terceiro sinal, escondem-se dores, amores, sonhos, realizações, planos, tristezas, problemas, soluções, decepções... um rio de sentimentos a desaguar no mar da cena aberta. No momento iluminado da ribalta, as divindades que regem o solo teatral concedem ao ator o dom de presentear a si mesmo e aos espectadores momentos de pura e intensa magia. Mas, como tudo na vida, isso tem um preço: o alheamento dos problemas mundanos. Ambas as partes – ator e espectador - se fundem numa saborosa e salutar comunhão, desligando-se por alguns preciosos instantes do mundo louco que aguarda pacientemente lá fora. A tônica deste texto é o estado de espírito com que cada ator se entrega ao seu ofício. Particularmente na comédia, é sabido que para se passar humor e graça com verdade, é preciso que se esteja imbuído de emoções como prazer e alegria. Bem, isto é a teoria, embora a prática às vezes se mostre totalmente contrária. Já presenciei verdadeiras demonstrações de puro amor à arte, onde o que se esconde por trás da pintura é exatamente o oposto. Já vi atores em uma comédia do tipo besteirol que não se falavam ou até mesmo não se suportavam fora de cena, tendo que se entregar um ao outro sob os refletores em uma falsa, mas convincente cumplicidade, fazendo o público ir ao delírio, explodindo em gargalhadas.
Já vi outros tantos terem que terminar um espetáculo logo após um assalto à mão armada à bilheteria do teatro, com direito a sons de tiros e total apavoramento da platéia. Neste caso, o susto pela violência soma-se ao fato de não poder levar para casa neste dia, o já minguado apurado de quem (sobre)vive da arte. Terminar uma peça desta maneira requer carga triplicada de adrenalina, disciplina, respeito ao público e a si mesmo, pois o que está exposto naquele instante, em carne viva, é a alma nua do artista, sem qualquer defesa. Eu mesma já experimentei algumas agruras, como dar início à função completamente febril e muito doente da coluna, ou com o pensamento distante por motivo de enfermidade de alguém muito próximo e querido, entre tantas outras razões alheias à minha vontade. Porém, é incrível constatar o quanto somos abençoados e protegidos ao pisar naquele solo sagrado. E este sentimento só é conhecido por quem já pisou ali no palco, fez reverências ao público e foi reverenciado de volta.
Já vi ator enterrar pai, filho, ou colega de cena à tarde, para no mesmo dia, à noite, transformar a dor pungente e latejante em força sobre-humana, no intuito de levar àquelas pessoas que cumpriram o ritual de sair de suas casas exatamente o que elas foram buscar: um alento para os momentos pesados da vida. O esforço é mais do que válido, pois não há gratificação interior maior do que fazer alguém feliz, que dirá uma platéia inteira. Ossos do ofício. Com o coração sangrando em velado silêncio, o ator consegue o feito de se render à sobrevivência da própria loucura, mesmo que haja o inevitável desabamento quando as cortinas se fecharem. Dali, do seio do teatro, em todas as apresentações, ele morrerá e ressurgirá igual Fênix: das cinzas, à redenção.
Convém lembrar aqui que fazer rir é uma arte dominada por poucos e tentada pretensiosamente por muitos. É a habilidade de reunir diversos elementos, tais como ritmo, agilidade e verdadeira vocação e paixão pelo que se propõe a fazer. Não é nada fácil. Fazer chorar? Consegue-se isto em dois tempos. Diante das mazelas e lutas do dia-a-dia, as pessoas desenvolvem uma sensibilidade e ao mesmo tempo uma dureza tamanha que já vêm com o espírito propício para reagir através de lágrimas.
Não posso deixar de citar aqui somente um dos inúmeros ensinamentos de meu mestre Bemvindo Sequeira, com quem tive a honra de trabalhar durante dois férteis anos. Bemvindo é, sem dúvida alguma, um dos maiores atores cômicos existentes no Brasil. Em seu livro intitulado “Humor, Graça e Comédia”, Bemvindo atenta para a função do comediante: “Re/ler a tragédia humana, re/conhecê-la e re/contá-la para a platéia, aproximando estranhos, aliviando fardos, assimilando o mistério da existência”. Tenho a exata certeza de que você, caríssimo leitor, irá refletir e considerar que, a partir deste momento, conceberá um espetáculo de comédia com um outro olhar. E assim, munido da exata noção do que se passa pelas janelas da alma de um artista, seguirá a eterna comunhão. Artista e platéia. Dois em um. Seres humanos com asas de cera que voam inebriados até o sol, para depois cair de volta na realidade, ao menos um tanto mais felizes.
"Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo...
Quando Ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez, tudo era água. Na terceira gargalhada apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ele ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma."
(De um papiro grego).