sábado, 20 de fevereiro de 2010

A difícil arte de fazer rir



Quem costuma ir ao Teatro, principalmente para ver comédias, quase nunca atenta para imaginar o que acontece nos bastidores. Veja bem, não falo de bastidores que envolvem refletores, camareiros, maquinistas, cenários e todo um sem-fim daquela parafernália que dá asas à nossa imaginação, até porque caberia aí um texto à parte. Falo de uma realidade igualmente complexa e não menos interessante, que é a vida do outro lado do espelho, o extra-sonho desses verdadeiros mensageiros da alegria. Falo com um certo conhecimento de causa, pois vivo há 12 anos a dor/delícia, a bem-aventurança de fazer parte deste universo onírico e ao mesmo tempo, tão palpável. Também sou atriz e posso afirmar com todas as letras; sem desmerecer a minha formação dramática, depois que enveredei pelos caminhos da comédia, não conheço lenitivo mais eficaz para todos os males que afligem nossa condição humana, que não seja o riso.

Em meio ao brilho esfuziante dos figurinos; à diversidade de caras e bocas; por trás da mesclagem pálida e colorida da maquiagem, esconde-se uma realidade tão mais parecida com a sua, caro leitor, do que sonha a vossa vã filosofia. Por trás da cortina, antes do terceiro sinal, escondem-se dores, amores, sonhos, realizações, planos, tristezas, problemas, soluções, decepções... um rio de sentimentos a desaguar no mar da cena aberta. No momento iluminado da ribalta, as divindades que regem o solo teatral concedem ao ator o dom de presentear a si mesmo e aos espectadores momentos de pura e intensa magia. Mas, como tudo na vida, isso tem um preço: o alheamento dos problemas mundanos. Ambas as partes – ator e espectador - se fundem numa saborosa e salutar comunhão, desligando-se por alguns preciosos instantes do mundo louco que aguarda pacientemente lá fora. A tônica deste texto é o estado de espírito com que cada ator se entrega ao seu ofício. Particularmente na comédia, é sabido que para se passar humor e graça com verdade, é preciso que se esteja imbuído de emoções como prazer e alegria. Bem, isto é a teoria, embora a prática às vezes se mostre totalmente contrária. Já presenciei verdadeiras demonstrações de puro amor à arte, onde o que se esconde por trás da pintura é exatamente o oposto. Já vi atores em uma comédia do tipo besteirol que não se falavam ou até mesmo não se suportavam fora de cena, tendo que se entregar um ao outro sob os refletores em uma falsa, mas convincente cumplicidade, fazendo o público ir ao delírio, explodindo em gargalhadas.

Já vi outros tantos terem que terminar um espetáculo logo após um assalto à mão armada à bilheteria do teatro, com direito a sons de tiros e total apavoramento da platéia. Neste caso, o susto pela violência soma-se ao fato de não poder levar para casa neste dia, o já minguado apurado de quem (sobre)vive da arte. Terminar uma peça desta maneira requer carga triplicada de adrenalina, disciplina, respeito ao público e a si mesmo, pois o que está exposto naquele instante, em carne viva, é a alma nua do artista, sem qualquer defesa. Eu mesma já experimentei algumas agruras, como dar início à função completamente febril e muito doente da coluna, ou com o pensamento distante por motivo de enfermidade de alguém muito próximo e querido, entre tantas outras razões alheias à minha vontade. Porém, é incrível constatar o quanto somos abençoados e protegidos ao pisar naquele solo sagrado. E este sentimento só é conhecido por quem já pisou ali no palco, fez reverências ao público e foi reverenciado de volta.

Já vi ator enterrar pai, filho, ou colega de cena à tarde, para no mesmo dia, à noite, transformar a dor pungente e latejante em força sobre-humana, no intuito de levar àquelas pessoas que cumpriram o ritual de sair de suas casas exatamente o que elas foram buscar: um alento para os momentos pesados da vida. O esforço é mais do que válido, pois não há gratificação interior maior do que fazer alguém feliz, que dirá uma platéia inteira. Ossos do ofício. Com o coração sangrando em velado silêncio, o ator consegue o feito de se render à sobrevivência da própria loucura, mesmo que haja o inevitável desabamento quando as cortinas se fecharem. Dali, do seio do teatro, em todas as apresentações, ele morrerá e ressurgirá igual Fênix: das cinzas, à redenção.

Convém lembrar aqui que fazer rir é uma arte dominada por poucos e tentada pretensiosamente por muitos. É a habilidade de reunir diversos elementos, tais como ritmo, agilidade e verdadeira vocação e paixão pelo que se propõe a fazer. Não é nada fácil. Fazer chorar? Consegue-se isto em dois tempos. Diante das mazelas e lutas do dia-a-dia, as pessoas desenvolvem uma sensibilidade e ao mesmo tempo uma dureza tamanha que já vêm com o espírito propício para reagir através de lágrimas.

Não posso deixar de citar aqui somente um dos inúmeros ensinamentos de meu mestre Bemvindo Sequeira, com quem tive a honra de trabalhar durante dois férteis anos. Bemvindo é, sem dúvida alguma, um dos maiores atores cômicos existentes no Brasil. Em seu livro intitulado “Humor, Graça e Comédia”, Bemvindo atenta para a função do comediante: “Re/ler a tragédia humana, re/conhecê-la e re/contá-la para a platéia, aproximando estranhos, aliviando fardos, assimilando o mistério da existência”. Tenho a exata certeza de que você, caríssimo leitor, irá refletir e considerar que, a partir deste momento, conceberá um espetáculo de comédia com um outro olhar. E assim, munido da exata noção do que se passa pelas janelas da alma de um artista, seguirá a eterna comunhão. Artista e platéia. Dois em um. Seres humanos com asas de cera que voam inebriados até o sol, para depois cair de volta na realidade, ao menos um tanto mais felizes. 



"Tendo rido Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo...

Quando Ele gargalhou, fez-se a luz... Ele gargalhou pela segunda vez, tudo era água. Na terceira gargalhada apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Depois, pouco antes do sétimo riso, Deus inspira profundamente, mas ele ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma."


(De um papiro grego). 

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Chico Anysio com lasanha



Que a vida de produtor é muito louca, disso ninguém tenha dúvidas. Porém, o mais curioso desta profissão é que nenhum dia é igual ao outro. Quem não gosta de rotina, ama correria e sobretudo a arte, identifica-se logo de imediato.

Uma curiosidade é que trazemos o show até a nossa cidade, ciceroneamos o artista e não conseguimos curtir o fruto de nosso trabalho, ou seja, o show propriamente dito. Explico: exatamente na hora em que o artista sobe ao palco, estamos nos virando em dez ao mesmo tempo, resolvendo mil e um problemas que aparecem quando menos esperamos. É um tal de convidado que trouxe alguém a mais e você não pode dizer NÃO a um patrocinador; é gente tentando burlar a lei da meia-entrada, utilizando identidade estudantil falsa; é o sem fim de caprichos e marras de artista; é o iluminador que ainda não chegou e estamos a quinze minutos do início do espetáculo... Ufa! Sou capaz de ficar aqui o dia inteiro desfiando o rosário de contratempos que encaramos no estafante e emocionante dia de branco de um produtor, sem contar ainda que no decorrer do show, contabilizamos o nosso lucro ou prejuízo na sala de administração do teatro, enquanto a platéia se diverte ou se emociona às nossas custas, no bom sentido é claro.

Porém, aí é que vem a melhor parte, o que nos impulsiona a embarcar nesta loucura toda. Não vemos o que o público vê – o show - mas temos o privilégio de vislumbrar o que a platéia não enxerga. O que nos encanta e nos faz seguir adiante é a magia por trás do pano, é testemunhar o momento mais íntimo do artista, coisa para poucos. No decorrer deste texto, você compreenderá a dimensão da tese que defendo.

Quero deixar aqui um dos inúmeros episódios de minha curta, porém inesquecível convivência com Chico Anysio entre 1998 e 2000, quando viajei algumas capitais do Nordeste fazendo produção executiva para este ilustre e inigualável artista.

Estávamos em Fortaleza, em meados do ano 2000, viajando com o show "O Fofo". Após uma apresentação mais do que abarrotada no Theatro José de Alencar, o velho Chico cismou de não querer jantar no restaurante que estava nos patrocinando. Alegou cansaço, dizendo que queria comer algo no hotel mesmo, onde ele e a produção estavam hospedados. Fizemos então a vontade do grande mestre. O hotel - diga-se de passagem, 5 estrelas - ficava fora da cidade, acho que uns 30 quilômetros. Quando lá chegamos, aproximadamente a uma da manhã, qual não foi a nossa surpresa ao nos deparar com o restaurante fechado? O recepcionista do hotel, um tanto constrangido, nos falou que não havia como preparar nada na cozinha, naquele horário. O que fazer diante de um Chico Anysio “azul de fome”? Achei logo um absurdo um hotel daquela categoria não ter um serviço para atender hóspedes no meio da noite, fosse quem fosse. O velho Chico então não se fez de rogado. Entrou calmamente em uma lojinha de conveniências na recepção do hotel. Esta sim, funcionava 24 horas. Foi até um dos freezers, pegou uma lasanha pré-pronta e pediu que pelo menos a esquentassem no microondas da cozinha do hotel e a levassem ao seu apartamento. E assim foi feito.

Chico lembrou-se de que eu não havia comido nada até então, pois estávamos no mesmo barco, digo, hotel. Mandou que me chamassem até seu quarto para dividir a lasanha. Lá fui eu, cheia de dedos, indo comer uma lasanha com o rei do humor brasileiro...

Chegando ao quarto, me deparei com uma cena que jamais sairá de minha mente. Aquele homem, cujo universo comporta mais de 200 personagens distintos, cujo nome é uma lenda dentre as lendas da história da televisão brasileira, transformava-se na minha frente em um distinto senhor de então 72 anos de idade, vestindo pijama listrado, meias e chinelos Ryder, a trabalhar por trás dos óculos, mergulhado em compenetração e seriedade, lendo e-mails e distribuindo ordens online através de seu laptop. Confesso que fiquei enternecida diante de tão frágil imagem. À minha frente, estava um verdadeiro gigante reverenciado unanimemente, que embalava minha infância ao som de “Baiano e os Novos Caetanos”, que me fazia rir em criança, quando eu ainda nem entendia direito as piadas, mas com certeza já identificava o Coalhada, o Painho, a Salomé, o Alberto Roberto, o Pantaleão, o Bozó, o Bento Carneiro... só para citar algumas “entidades” que ele encarnava sempre com maestria.

O melhor de tudo é que o velho Chico nos deixa à vontade como se fôssemos amigos desde sempre. Enquanto saboreávamos a lasanha juntamente com seu filho e empresário André Lucas, contava-nos causos e piadas e nos deixava contar as nossas, sem nenhuma reserva. Afinal de contas, ele tinha mais é que enriquecer o próprio repertório. Lembro-me de ter ficado impressionadíssima com a vivacidade, o raciocínio rápido e o seu humor agridoce e um tanto sarcástico, típico de quem domina a arte do riso.

Durante toda a minha permanência em seu quarto, a fome e o cansaço quase que prostrado eram o que menos importavam para mim. Me senti tão privilegiada, que compreendi que a lasanha foi só um pretexto para que eu testemunhasse o verdadeiro significado de minha profissão e não mais me incomodei com o fato de não poder assistir às apresentações de “meus” artistas. Toda a grandeza da existência daquele ser diante de mim, tão humano como qualquer outro, porém tão adorado pelas multidões que cativou durante uma vida entregue à missão de levar alegria, estava ali, pulsando, a ponto de me flagrar em total alumbramento.

O dia em que Chico Anysio dividiu uma lasanha comigo me ensinou muito mais do que eu poderia imaginar. De uma maneira especial e única, o velho Chico me proporcionou inconscientemente o maior presente que eu poderia ganhar, assim como as vezes em que o vi concentrado no camarim antes de cada show.

O artista é sim um ser tocado por uma magia especialíssima, totalmente alheia a qualquer entendimento. Porém, quando descerram as cortinas, ele volta à sua condição de ser humano e “perde suas asas” até o próximo encontro com aquilo que faz girar a força motriz de sua existência: o público. Sem dúvida alguma, fora dos palcos, a aura encantada o acompanha, mas encantamento maior é saber que ali está alguém de carne e osso, com as mesmas virtudes, defeitos e sonhos de que é formado o homem.



"Um artista é apenas um homem comum com uma enorme potencialidade - mesmas ferramentas, mesma maquiagem, apenas mais força. E a força que guia sua vida geralmente acha seu ponto fraco, e então ele enlouquece ou deprime. "

( David Herbert Lawrence )

Voltando à ativa...


Hoje resolvi voltar a mexer aqui neste cantinho, após tanto tempo de jejum. Não sei exatamente o porquê de ter parado de postar meus pensamentos e textos, só sei que agora, movida muito pelo incentivo de amigos e pela minha própria vontade de expor os sentimentos lá do meu íntimo, volto a dividir com todos vocês e com muita alegria este espaço virtual.

Grande abraço e dias ensolarados a todos. É bom demais voltar aqui!