quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Anayde Beiriz, o fulgor das paixões e a ousadia em vivê-las



Ela foi uma mulher muitíssimo acima do seu tempo, no início do século XX. Sofreu todo o tipo de preconceito por ser bela e arrojada demais para a época e amou em demasia. E morreu enlouquecida por causa deste amor. Falo de Anayde Beiriz, mulher paraibana que levou o seu desejo às últimas consequências. 

No poema abaixo, a 
"pantera dos olhos dormentes" 
se desnuda desprovida de qualquer pudor e deixa ferver na ponta dos dedos a alma feminina. 



De uma carta que te escrevi e não te enviei


Não Eu não hei de chorar [...]
Tu me conheces bem pouco. Por isto é que me falas em
lágrimas.
Só os desesperados é que choram e eu continuo a esperar
[...]
Pouco se me dá saber da tua nova paixão [...]
É tão vulgar a existência de outra mulher no destino do
homem que a gente deseja [...]
E, bem sabes, no amor, como em tudo, apenas me seduz
a originalidade [...]
A razão por que gostei de ti?
Porque pensei que tu eras louco [...]
Tive sempre a extravagância de achar deliciosos os loucos
que julgam ter juízo [...]
Desiludiste-me afinal!
[...] E é tão desinteressante um homem ajuizado que
finge de louco [...]
Dizes que me procurarás esquecer. Ingênuo!
Desafio-te a que o consigas [...]
As marcas das minhas carícias não foram feitas para
desaparecer facilmente [...]



Mil outros lábios que se incrustarem na tua boca não


arrancarão de lá a lembrança

da minha [...]
Mas, se ainda assim, o conseguires, a tua vitória não
será duradoura.
Não há vantagem em esquecermos hoje o que temos
de lembrar amanhã [...]
Apraz-te que eu guarde os meus beijos [...]
Guarda-los-ei, por enquanto.
Advirto-te, porém, que os beijos são como os vinhos
raros, quanto mais velhos, melhor embriagam [...]
Enganas-te se pensas que entre nós dois tudo está terminado
[...]
Se agora é que começou [...]
A nossa história, hoje, está bem mais interessante [...]
E tu fizeste para mim, muito mais desejado [...]
Porque tenho que te arrancar do domínio de outra
mulher [...]
No entanto, eu já não te amo [...]
Admiro os homens fortes e tu és um covarde:
Tens medo do meu amor. Receias o delírio febril do meu
desejo, a exaltação diabólica do meu sensualismo, a
impetuosidade selvagem da minha volúpia [...]
Sonhar um afeto simples, monótono, banal [...] Um
afeto que toda mulher pode dar [...]
Tu, um artista!
Fazes bem em procurá-lo distante de mim
O meu amor é bem diferente: é impulsivo, torturante,
estranho, infernal [...]
Ouve, contudo, o que te digo: hás de experimentá-lo
ainda uma vez [...]
Então veremos quem de nós dois chorará [...]

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Missão cumprida

 

               Em meu começo de vida no Rio de Janeiro, certa feita, conheci uma figura que irá me acompanhar para sempre: Mariano. Este personagem real - um simpático senhor grisalho de 73 anos - foi meu colega de profissão, no tempo em que eu trabalhava como produtora em um programa de televisão no centro carioca, em plena Lapa.


          Mariano me conquistou no dia em que começou a rir de minhas macaquices e me deu uma bala de tamarindo. Foi assim que nasceu a amizade entre o velho palhaço risonho e a nordestina recém-chegada à terra de São Sebastião.

        Em nosso trabalho, era de responsabilidade do velho Mariano um quadro no programa de auditório “A Cara do Rio”, intitulado “Reencontro”, cujo propósito era localizar pessoas desaparecidas e proporcionar-lhes o reencontro com suas famílias ali, no programa mesmo. Ele já havia passado por várias emissoras, um verdadeiro pioneiro da TV, sempre acompanhado pelo sucesso de sua habilidade em investigar o paradeiro das pessoas cujos parentes escreviam, na esperança de participar do quadro.

        Era um senhor adorável. Gostava da sonoridade de meu sotaque nordestino. Ia sempre às gargalhadas quando eu deixava escapar um “Vala-me Deus!” ou entregava na lata dura a minha honrosa procedência, com um “Oxente!”. Sua arte era mexer cavalheiramente com todos, alegrar o ambiente, rir da gente e com a gente, além é claro de seu dom maior: o de proporcionar felicidade aos que se reencontravam após anos ou até décadas de certezas, incertezas, angústias e esperanças que só sente quem sabe o que é ter um ente querido desaparecido.

            Sabia que suas colegas de trabalho eram verdadeiras “formigas” e nunca chegava ao trabalho com os bolsos vazios. Levava sempre consigo mil e uma guloseimas, inclusive as famosas balinhas de tamarindo.

            Antes das gravações, afinando as câmeras, o maior passatempo do velho Mariano era pegar uma dentadura do irmão dele (devo destacar aqui: o irmão já era falecido), envolvê-la em um lenço "Presidente", entrar no palco, encarar um auditório contendo aproximadamente 200 pessoas, simular um espirro e deixar a dentadura cair em pleno chão do palco, fazendo o público explodir em deliciosas gargalhadas, achando que o velho tinha a dentadura frouxa. Ninguém se agüentava. Técnicos, artistas, produtores, caravanas de bairros de periferia. Um momento de catarse criada com o intuito despretensioso de divertir, e, ao mesmo tempo, aquecer a platéia para as atrações a seguir.

          Mariano não era chegado a emoções fortes. Acredito que talvez não pudesse tê-las. Ele evitava assistir à gravação do próprio quadro. Apenas preparava tudo, e instruía os colegas de produção como gostaria que fosse desenrolado cada reencontro na televisão, pois para os mais leigos, é o tipo de quadro em que a reação de reencontro tem que arrancar lágrimas dos telespectadores e era um momento de emoção única; não há como pedir para repetirem tal cena. Estávamos lidando com o real. Restava-nos a tarefa de dar somente o arremate do que ele havia alinhavado. Mariano não ficava. Ia lá pra fora e só voltava com a gravação concluída, ou simplesmente ia embora pra casa. Respeitávamos sempre esta decisão dele. 

          Um dia, ele resolveu ficar e coordenar pessoalmente a gravação de seu quadro. Era um momento especial de seu trabalho, onde ele conseguiu reunir no palco duas irmãs e uma mãe, que não se viam havia 45 anos. Era o ápice de uma carreira abençoada. Mariano vivenciou a festa. A cena de mãe e filhas abraçadas e em prantos diante das câmeras e platéia produziu um grande impacto em todos. E então ele viu ali, em toda a sua plenitude, a real face de sua missão nessa existência. Viu-se como um ser pleno, de contas acertadas com a vida.

          Após toda aquela celebração, nosso amigo foi pra casa, e nunca mais voltou. No dia seguinte ao da gravação, um AVC o tirou de nosso convívio, assim como a emoção de ver o fruto de seu próprio trabalho foi demais para um coração tão sensível. Pela sua eterna “malandragem” e jeito bonachão que encantava qualquer criatura, imagino que ele ainda tenha tentado negociar com Deus um prolongamento de sua estada na Terra, coisa que durou somente dois dias. Nada é por acaso. Mariano terminava ali um ciclo, e começava outro. Deus devia ter uma certa urgência em resgatar aquele ser de luz. Mariano encantou-se de corpo e alma, mas continua servindo e fazendo muita gente feliz, disso eu tenho plena certeza. Cá na Terra, a missão dele foi mais do que cumprida.

            O trecho abaixo é de uma música do artista mineiro Vander Lee, que muito em particular, me remete àquela época em que esta história aconteceu, assim como também ajuda a suavizar a saudade que sinto de um ser humano doce, que tem por costume fazer chover balas azedinhas de tamarindo, agora em outras esferas.


“Mas o vazio que você deixou no meu apartamento
Quase transbordou meu coração, meu mundo ficou mudo
Você foi pra tão distante, e eu quero tanto te ver
Por isso não se espante, se numa noite bela
Aquela estrela brilhante em sua janela bater”